Comportamento

Vive melhor quem se faz de surdo na hora certa

Graças ao exemplo que minha mãe foi, eu tento sair da tristeza o mais rápido que conseguir, eu tento não carregar comigo a escuridão que não fui eu quem provocou, eu tento me fazer de surdo diante de pessoas que não me acrescentam.

Minha mãe tinha um bom humor incrível. Mãe de seis filhos, conviveu com seis adolescentes sem perder a alegria de viver. Vivia cantarolando e inventando festas, almoços, comemorações do nada.

Colocava a música na caixa de som da cozinha e lá ia cozinhar, sua terapia diária. Abriu mão de muita coisa para nos criar, mas jamais se permitiu abrir mão de seu sorriso.

Minha mãe tinha uma técnica de vida que a salvava enquanto vivia: ela desligava o botãozinho do “ouvir”, na hora certa.

Não guardava com ela nada que fosse ruim, nenhuma palavra pesada, nenhuma lembrança doída. Eu conversava com ela a toda hora e tudo o que ela me falava era doce, gostoso, feliz.

Além de sua fé em Jesus e na Virgem Maria, minha mãe sabia como ninguém se adaptar ao que tinha pela frente.

Sua capacidade de adaptação de acordo com o que estava disponível era clara na forma como cozinhava.

Não importava o horário ou o dia que chegássemos a sua casa, em pouco tempo ela preparava alguma coisa deliciosa para comermos, com o que estava à mão, sem ter que ir ao mercado correndo.

Uma das formas de minha mãe dizer que nos amava era pondo a mesa para nós. Um amor simples, mas verdadeiro, gostoso e feliz.

Eu sempre tento ligar esse meu botãozinho da surdez, quando necessário, mas não consigo ficar surdo sempre que quero. Algumas atitudes, certas palavras e determinadas situações ainda me abalam muito. Abalam mais do que deveriam.

Eu sei que, dependendo de quem vier, a dor nem deveria se aninhar na gente, nem por um segundo, porque existem pessoas que não merecem nada de nosso pensamento. Infelizmente, a gente nem sempre manda no coração e no sentimento.

Mesmo assim, graças ao exemplo que minha mãe foi, eu tento sair da tristeza o mais rápido que conseguir, eu tento não carregar comigo a escuridão que não fui eu quem provocou, eu tento me fazer de surdo diante de pessoas que não me acrescentam.

Com a idade, a gente consegue ter bem claro que é preciso levar em conta somente o que vem de quem caminhou junto e torce verdadeiramente por nós. O resto é dispensável, afinal, no fim da jornada, teremos que prestar contas é com a gente mesmo.

Prof. Marcel Camargo

Graduado em Letras e Mestre em "História, Filosofia e Educação" pela Unicamp/SP, atua como Supervisor de Ensino e como Professor Universitário e de Educação Básica. É apaixonado por leituras, filmes, músicas, chocolate e pela família. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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