Sempre fico espantada quando me deparo com um paciente que mantém a serenidade em meio ao caos.
Seu diagnóstico é assustador, seu prognóstico é sombrio, suas perspectivasserenidade pessoais vão se restringindo a cada dia, e ele permanece ali, em paz, até mesmo feliz.
Já confundi essa serenidade com incompreensão, julgando erroneamente que o paciente não estava sendo capaz de entender a gravidade da situação em que se encontrava. Já confundi com fanatismo religioso também. Ou até com limitação psicológica. Mas não.
O fato é que existem pessoas que conseguem lidar com suas tragédias pessoais dessa forma, impedindo que o desespero tome conta de suas vidas.
Sim, a vida é dura. Mais dura para uns que para outros, é verdade, mas fácil não é para ninguém. Mas o que muda, de verdade, não são os fatos e obstáculos que temos que enfrentar, e sim a forma como escolhemos lidar com eles.
Tentar evitar dificuldades pode parecer natural e compreensível, mas na verdade não funciona. Nós simplesmente não temos o poder de permanecermos blindados contra a dor durante toda a vida. O segredo está na invejável capacidade de fazer das tristezas e agruras o caminho para sentir-se mais feliz.
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Num primeiro momento, pode parecer impossível (até insano). Mas a prática consciente da paciência é a ferramenta que essas pessoas utilizam para transformar situações de extremo sofrimento em oportunidades de aprendizado.
Trata-se de controlar nossas reações naturais (do tipo “Por que comigo?” ou “Isso será insuportável para mim”) e treinar nossas mentes para reações mais positivas e eficientes (“Bom, vamos ver como é que eu vou me sair dessa vez.”). Esse é um treino de todos os dias, de todas as horas, e não algo que deve ser iniciado assim que temos uma notícia bombástica como um diagnóstico de câncer avançado.
Essas “pessoas iluminadas” às quais me refiro mantém um padrão positivo de pensamentos há muitos anos, bem antes de uma minúscula célula cancerosa começar a se desenvolver em seus corpos. Elas cultivaram a paciência durante toda a vida (ou pelo menos durante boa parte dela). Elas tendem a não entender os obstáculos como injustiças ou tragédias, e sim como parte do jogo. Treinaram suas mentes e seus corações para isso.
Outra coisa que sempre me chama a atenção é a capacidade dessas pessoas de se livrarem da culpa. Não apenas da culpa pessoal, por algum ato que possa tê-las prejudicado, mas da culpa em geral. Elas tendem a não procurar culpados pelas dificuldades em suas vidas. Dificuldades simplesmente são normais. Por maiores que sejam.
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Mas nem o pensamento treinado para ser positivo nem a libertação da sensação de culpa são mais tocantes que sua gratidão pela vida. Vejo gratidão em seus olhos e em suas palavras, gratidão por tudo o que as cerca.
Pela palavra atenciosa da secretária, pelo tempo que o médico lhe dedicou, pela resposta a um e-mail particularmente importante (e pelos e-mails pouco importantes também). Gratidão por comer algo que lhes dê prazer, por ir à festa da neta, por andar dez minutos de bicicleta, por uma boa noite de sono. Trata-se de uma gratidão profunda e sincera, praticada a cada momento, todos os dias.
Como é que elas conseguem? Como podem ser felizes lidando com uma doença tão cruel quanto o câncer?
Alguém poderia responder: “Isso é muito bonito na teoria, mas na prática é muito mais difícil”. Concordo. É difícil mesmo. Mas, se a gente parar pra pensar, não é muito mais difícil quando uma situação terrível invade nossas vidas sem que estejamos minimamente preparados para ela?
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Condicionar nossos pensamentos para que possam lidar com situações adversas é como se preparar para uma maratona: você não completa 42 km sem um treinamento dedicado e prolongado. E ninguém diz que alguém teve “sorte” por completar uma corrida dessas.
Então, não se trata de ser privilegiado por ter uma alma iluminada. É muito mais uma questão de esforço do que de sorte. O mais difícil é apenas começar.
(Autora: Ana Lucia Coradazzi – Oncologista clínica)
(Fonte: nofinaldocorredor.com)
*Texto publicado com a autorização da autora
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