Confesso que nunca fui muito sensível à morte. Sempre a considerei parte inevitável da vida. Até perder minhas filhas gêmeas, em março de 2018, entrando no sexto mês de gestação.
Quando aconteceu, minha percepção era de estar vivendo a pior experiência da vida. Era como se tivessem amputado parte de mim.
Passados mais de um ano e meio, ainda estou aprendendo como lidar com a vida após o trauma. Acho que envelheci uns 12 anos em menos de 2. Tudo o que tenho das minhas filhas, é uma tatuagem no braço, um túmulo no cemitério e um buraco no peito, do tamanho de uma bala de canhão.
Se tem algo que não desejo a nenhuma mãe é sair da maternidade carregando o caixão do seu bebê. Eu e meu marido carregamos dois! Sem dúvida, a pior experiência das nossas vidas.
Com o que passamos, compreendi muitas coisas a respeito de pessoas com depressão pós luto, o que alguns especialistas chamam de “luto complicado”. Como se existisse o “luto facilitado”… Talvez para psicopatas exista.
A questão é que entrei para esse seleto e nada orgulhoso grupo dos afetados pelo luto e tomei uma decisão logo que entrei para o “clube”: a de transformar minha dor em uma causa. Falarei sobre isso mais adiante.
Segundo especialistas, são cinco as fases do luto: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.
Profissionais da saúde psíquica dizem que não há um tempo determinado nem uma sequência para cada fase.
No meu caso, ainda na maternidade, senti muita raiva. Do que? Da incompetência médica na identificação do diagnóstico, em especial, porque poderia ter salvo minhas filhas. E a raiva maior: não foi um só médico. Foram vários, em todos os três hospitais pelos quais passei, enquanto a dor na barriga não virava sangramento e mesmo depois de evidentes os sintomas.
O desinteresse médico foi chocante. Deveríamos repensar a forma como esses profissionais lidam com situações de risco à vida. Não se tratava de uma “dor de barriga”, mas sim de uma gravidez gemelar monocoriônica, diamniótica, com alto risco de Transfusão Feto-fetal. Exatamente o que me acometeu e o que meu corpo gritava para anunciar e o que evidentemente não souberam diagnosticar em tempo de salvar duas vidas.
A negação da dor veio duas semanas depois da perda, quando decidi retomar minha agenda profissional.
Para ajudar, fui ministrar a segunda parte de um treinamento de vendas que iniciei antes de perder as meninas. Foi um desafio me manter de pé. Minha escolha foi ENFRENTAR A DOR. Então abri o treinamento falando sobre o que havia acontecido e agradecendo pela compreensão da turma em adiar em uma semana a retomada do conteúdo.
Nas duas semanas seguintes, mantive a mesma postura, falei sobre o que havia acontecido, sem derramar sequer uma lágrima. Até que me deparei com uma participante de um dos meus cursos, que há um ano, havia perdido o seu bebê no último mês de gestação durante o parto.
Enquanto eu contava o que havia me ocorrido, ela se retirou o rapidamente da sala o que me preocupou bastante e causou arrependimento por ter abordado o tema, mesmo que a intenção fosse falar sobre a forma como cada um enfrenta seus traumas e dores e ressaltar a importância do autoconhecimento e inteligência espiritual, o que eu sabia que eram os pilares que me mantinham de pé, junto com o amor por meus filhos e marido.
Confesso que sofri por essa mãe quando minha ficha caiu de que o tempo nem sempre melhora ou alivia a dor da perda. De fato, os especialistas em saúde psíquica estão certos em afirmar que cada um tem um tempo e um processo de cura ou aceitação em relação aos traumas. Ouso dizer que algumas vezes determinadas perdas são incuráveis.
O que me sustentou de pé da constatação de que os coraçõezinhos das minhas Marias não estavam mais batendo dentro da minha barriga, e até hoje, foi uma fé que descobri ser muito bem enraizada, mesmo não sendo inabalável. Por diversas vezes questionei a Deus. E de alguma forma, mesmo que através de alguém, Ele me confortou e deu respostas.
A fé de fato é parte fundamental do processo psíquico, graças a ela, eu me mantive na maior parte do tempo, sóbria e capaz de enfrentar a dor e reconhecer a depressão através de comportamentos característicos que se manifestaram do meu emocional ao corpo físico. Não fosse a Inteligência Espiritual que busco todos esses últimos 15 anos com tanto afinco, certamente eu teria somatizado esse sofrimento de maneira autodestrutiva.
A somatização aconteceu sim, em forma de ganho de peso, constantes alterações de humor – beirando a vontade de morrer, uma perda de concentração e articulação estratégica, o que prejudicou meu desempenho nos trabalhos assumidos logo em seguida ao trauma sofrido.
Como voraz pesquisadora do comportamento humano que sou, eu sabia que eu não poderia negligenciar o luto fingindo que ele não existia, nem tão pouco, entregar-me a vontade de ficar no meu quarto, com as janelas fechadas, no escuro, encharcando meu travesseiro com lágrimas de uma mãe ferida e mutilada.
Minha mutilação foi emocional, porque graças a Deus, exames após o ocorrido mostram que meu corpo físico está perfeito e tenho condições de ter mais filhos. A questão é será que estou preparada ou disposta a tentar novamente? Ainda não sei. Optei por adiar essa decisão e priorizar meus projetos profissionais.
Meu marido não tem filhos e sonha em ser pai. Eu tenho um filho de 18 anos e uma filha com 13, frutos de outros relacionamentos. Ter mais filhos passou a ser uma questão a ser muito bem pensada depois do ocorrido.
Confesso que a esperança de que minhas meninas voltem para mim de alguma forma, em vida, grita na minha alma. E você que lê esse texto, pode ter a certeza de que se eu soubesse estar novamente grávida de gêmeos, minhas Marias não me escapariam novamente.
Afirmo isso com tanta convicção porque ainda na maternidade enquanto eu passava por toda aquela desgraça eu pesquisei a respeito de tudo que o que deveria ser feito do diagnóstico ao tratamento que salvaria a vida das minhas filhas, o que seria totalmente factível, se o diagnóstico e devidos encaminhamentos tivessem ocorrido no tempo certo.
Você deve ter entendido que a depressão foi vizinha da raiva no meu processo de luto. Sabe quando chega uma tempestade no Quando num piscar de olhos um lindo dia de sol vira uma tormenta? Foi exatamente o que vivi. E a tormenta não foi a perda. Foi o luto.
Estou agora trabalhando no processo da aceitação, o que racionalmente é fácil afirmar – aceita porque dói menos – só que emocionalmente é muito difícil assimilar.
Aceitar implica não em ignorar ou anular o sofrimento, mas sim reconhecê-lo. De sentar e chorar não pela dor vivenciada no passado e sim pela saudade e mistura de outros sentimentos que fazem parte do presente e talvez façam para sempre.
Aceitação implica no reconhecimento do direito de sentir, da nossa vulnerabilidade e condição humana, totalmente frágil e divina.
É importante entendermos que fragilidade nos momentos de dor não conota fraqueza, e sim coragem, que se manifesta pela atitude de seguir em frente, reconhecendo que a vida vale a pena e as feridas da alma se tornarão cicatrizes que depõe a respeito da nossa história, dos combates aos quais vencemos e sobrevivemos.
Aceite. Entregue. Confie. Nem tudo seremos capazes de compreender. Nem sempre a vida nos parece justa, mas temos que encará-la como um treino, uma oportunidade de sermos melhores a cada dia.
Transforme sua dor em uma causa. É o que estou fazendo desde que ainda estava na maternidade, quando pesquisei sobre Tranfusão Feto Fetal e descobri que a incidência é altíssima, que acontece especialmente a partir do quinto mês de gestação, em gêmeos idênticos, e que é possível reverter o quadro, com uma pequena intervenção a laser. Estou reunindo informações e em breve as transformarei num projeto para criação de um protocolo de saúde específico, que impeça outras famílias de passarem por esse tipo de trauma.
Meu desejo é que tenhamos mais profissionais preparados e hospitais equipados para que isso não ocorra mais. É um sonho possível e que será realizado. Creio que isso amenizará minha dor, de forma expressiva.
(Imagem: Ksenia Makagonova)