“Que papel é apropriado desempenharmos na nossa própria morte?” (Margaret Battin)

Penso que seja pertinente, antes de responder à pergunta título deste post, explicar o que seja um Testamento Vital e qual o seu propósito. Afinal, este é um termo que começa a circular na mídia, mas percebo que centenas de pessoas não fazem ideia do que se trata e muito menos sua finalidade. Comecemos pelo básico.

O testamento vital é um documento que integra o que denominamos de diretivas antecipadas. Uma diretiva antecipada permite que você expresse seus valores e desejos relacionados aos cuidados de fim de vida. Você pode pensar nisso como um documento vivo, que você pode ajustar à medida que sua situação muda devido a novas informações ou a uma alteração em seu estado clínico. Segundo Dadalto (2013), as diretivas antecipadas fundamentam-se nos princípios da autonomia, do respeito às pessoas e da lealdade e possuem como benefício a melhoria da relação médico-paciente, e a autoestima da pessoa doente.

No entanto, você não precisa esperar ficar doente para pensar nas suas diretivas. O planejamento avançado de cuidados envolve o aprendizado sobre os tipos de decisões que possivelmente precisamos tomar quando somos acometidos por uma doença grave ou uma lesão. Esse planejamento prévio das suas preferências em final de vida ajuda familiares e equipe médica a saberem que tipo de assistência médica você deseja. Por exemplo, em caso de um acidente em que você sobrevive com gravíssimas lesões, você gostaria de se manter vivo com auxílio de máquinas? Você gostaria de respirar por meio de ventilação mecânica? Ou seja, você gostaria de ficar preso a uma cama com um tubo desconfortável em sua garganta, que por sua vez, está conectado a um ventilador para que possa forçar o ar para dentro dos seus pulmões. Você gostaria?

Ou a sua preferência é que todas as medidas de conforto sejam disponibilizadas e você tenha o melhor cuidado possível, mas sem medidas invasivas que prolonguem sua vida desnecessariamente e que a morte chegue no tempo que chegar?

Neste sentido, após refletirmos sobre nossas vontades e desejos precisamos redigir um documento para que estes sejam conhecidos pela nossa família e, consequentemente pela equipe médica que nos terá como pacientes. Você pode optar por fazer um testamento vital.

Segundo Dadalto, em seu portal Testamento Vital dedicado exclusivamente ao assunto, o testamento vital é um documento feito por uma pessoa com discernimento, civilmente capaz, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas curativas e impossibilitada de manifestar livremente sua vontade.

Ela ressalta que é importante que este documento seja redigido com a ajuda de um médico de confiança do paciente, contudo, o médico terá o papel apenas de orientar a pessoa quanto aos termos técnicos, não deve o profissional de saúde impor sua vontade ou seus interesses pessoais, pois a vontade que está sendo manifestada é exclusivamente do paciente.

As diretivas de vontade emergiram nas últimas décadas como uma das principais discussões da bioética mundial e como garantidoras da preservação da autonomia pessoal. Países como Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Estados Unidos da América (EUA), França, Holanda, Hungria, Inglaterra, México, Porto Rico, Portugal, União Europeia e Uruguai já possuem legislação específica sobre o tema (Cogo; Lunardi, 2018).

No Brasil ainda não há uma lei que regulamenta o tema, mas em 31 de agosto de 2012 o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou a Resolução CFM 1.995 13, reconhecendo o direito do paciente manifestar sua vontade sobre tratamentos médicos e designar representante para tal fim, bem como o dever de o médico cumprir a vontade do paciente (Dadalto; Tupinambás; Greco, 2013). Vontade esta que deverá ser redigida e lavrada em cartório. Essa formalidade se faz imperiosa para garantir ao declarante que sua vontade será seguida. Em outras palavras, a lavratura de escritura pública das diretivas antecipadas garante a segurança jurídica (Dadalto, 2013).

Em Portugal a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho de 2012, regulamenta as diretivas de vontade (DVA) no país. O sistema nacional de saúde disponibiliza um site com todas as informações necessárias sobre o tema, bem como possui um modelo de DVA. O mesmo pode ser preenchido pelos cidadãos nacionais, estrangeiros e apátridas residentes em Portugal, maiores de idade, que não se encontrem interditos ou inabilitados por anomalia psíquica. Após o preenchimento o documento terá que ser reconhecido por um notário. E, posteriormente o cidadão deverá entregá-lo no agrupamento de centros de saúde, ou na unidade local de saúde, da sua área de residência.

Na Inglaterra, a Lei da Capacidade Mental de 2005 inclui, em um dos seus capítulos, as decisões relativas à decisão antecipada que deve ser realizada por uma pessoa com capacidade de consentir com a realização ou continuação do tratamento, podendo retirar ou alterar a decisão a qualquer momento, enquanto capaz de fazê-lo. A decisão antecipada, como é denominada as vontades de final de vida, são legalizadas e foram regulamentas pelo Parlamento. Isto significa que se um profissional de saúde sabe que você já tomou uma decisão antecipada, eles têm de segui-la. Caso resolvam ignorar a decisão tomada pelo cidadão um processo poderá ser imputado contra eles em tribunal.‎ Assim como em Portugal, o cidadão inglês precisa imprimir o formulário devidamente preenchido, assiná-lo e compartilhá-lo com seus familiares e o médico responsável por ele.

Analisando todo o avanço da ciência e da tecnologia, que cada vez mais permite aparelhos incríveis para prolongar a vida humana por períodos inimagináveis, no meu olhar é imprescindível que o indivíduo tenha o seu testamento vital devidamente registrado, para evitar uma continuação de vida, ou uma morte, desumana. Para mim há um limite moral e ético na finitude da vida e o prolongar do viver com sofrimento pode se tornar imoral. Cada indivíduo possui seu padrão ético, com suas visões individuais sobre a morte e sobre seu próprio corpo.

Portanto, respondendo à pergunta deste post: Sim! O ideal, e eu compreendo que planejar o momento da morte não seja tarefa fácil, é que todos nós pensássemos nos nossos desejos e tivéssemos um testamento vital fundamentado nos nossos valores morais e éticos que permearam o nosso viver.

Referências:
COGO, S.B.; L., V.L. Diretivas Antecipadas: uma análise documental no contexto mundial. Texto & Contexto – Enfermagem, v. 27, n. 3, 2018. Disponível em: http://www.revenf.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072018000300300
Compassion in Dying [site]. Disponível em: https://compassionindying.org.uk/
Dadalto, L. Reflexos jurídicos da Resolução CFM 1.995/12. Revista Bioética. v. 21, n. 1, p. 106-12, 2013. Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/791/861
Dadalto, L.; Tupinambás, U.; Greco, D.B. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Revista Bioética. v. 21, n. 3, p. 463-76, 2013. Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/855/926
My Living Will [site]. Disponível em: https://www.mylivingwill.org.uk/#!
Serviços Partilhados do Ministério da Saúde [site]. Disponível em: https://spms.min-saude.pt/product/38732/
Testamento Vital [site]. Disponível em: https://testamentovital.com.br/
The National Health Service (NHS) [site]. End of life care. Disponível em: https://www.nhs.uk/conditions/end-of-life-care/advance-decision-to-refuse-treatment/
MENDES, M.V.G. et al. Testamento Vital: Conhecimentos e Atitudes de Alunos Internos de um Curso de Medicina. Rev. bras. educ. med., Brasília, v. 43, n. 2, p. 25-31, 2019 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022019000200025

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Psicóloga Especialista em Psicologia Hospitalar e Luto, Member of British Psychological Society. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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