Na Divina Comédia, de Dante Alighieri, os invejosos não vão para o inferno, vão para o purgatório. O castigo: pálpebras costuradas por fios de arame. Para o historiador Leandro Karnal, o castigo faz sentido, já que toda a inveja vem do olhar. Invejamos o que está próximo da gente. “A inveja é um tipo de cegueira, ela é a dor pelo sucesso alheio”, resume Karnal .
Único pecado do qual ninguém se orgulha, a inveja, que segundo o professor não deve ser confundida com a cobiça, atravessa a realidade das pessoas.
Para Karnal, doutor em História Social pela USP, professor da Unicamp e autor de diversos livros, conviver com pessoas que possuem mais bens, são mais bonitas, mais inteligentes ou com mais carisma do que nós constitui a prática dura da sociabilidade. A maioria das pessoas se considera invejada, mas não invejosa porque o pecado é quase inconfessável. “A inveja é dolorosa porque é uma homenagem indireta a quem eu invejo”, explica.
Em entrevista por telefone ao POPULAR, Karnal falou um pouco mais sobre sua visão sobre o tema, adiantou tópicos que serão debatidos hoje à noite e falou da importância de reconhecer nosso objeto de inveja como forma de autoconhecimento. Confira trechos da conversa:
Zuenir Ventura escreveu no seu livro O Mal Secreto que a inveja é inconfessável, mas ninguém se livra dela, por mais que disfarce. Na sua opinião, por que a inveja é um pecado tão envergonhado?
Na tradição dos pecados capitais, as pessoas se orgulham deles. Elas se orgulham de comer demais, da luxúria, do sexo, da ira e até mesmo da avareza, dizendo que são “contidas”. Mas a inveja é um sinal de impotência, de desejar algo do outro. O resultado é um pecado envergonhado porque as pessoas têm de reconhecer que o outro é mais do que elas. Por isso é o único pecado do qual ninguém se orgulha. Ninguém sai por aí dizendo “eu sou invejoso”.
Muita gente confunde inveja com cobiça, mas o senhor faz questão de diferenciá-los. A cobiça seria um pecadinho “mais leve” do que a inveja?
A cobiça nem precisa ser pecado porque ela pode ser positiva. Eu cobiço o seu carro e compro um igual. Mas ela também pode ser negativa, como o caso do ladrão que cobiça seu carro e o rouba. A inveja não. Ela é sempre negativa, destruidora. Como define São Tomás de Aquino, a inveja é a tristeza pela felicidade dos outros, a exultação pela sua adversidade e a aflição pela sua prosperidade. É uma vontade de que o outro não seja feliz.
Estamos chegando na época das confraternizações de fim de ano das empresas e das festas natalinas em família. O senhor acredita que sua conferência vem em um momento propício para as pessoas compreenderem melhor o mecanismo da inveja?
Acho que invejamos o tempo todo, mas neste período que a gente é obrigado a ser feliz por calendário– ou seja, felicidade com data marcada – é uma época mais dramática para as pessoas. Ter que passar em família não significa gostar de passar em família. Obviamente a festa da empresa é o pior programa possível porque é uma festa de exame, de análise dos candidatos, de quem vai continuar no ano seguinte…
O que o senhor acha de gente que diz ter “inveja branca”?
Essa expressão já teria que ter sido proibida desde a Lei Afonso Arinos, que proibiu a discriminação racial no Brasil. Não dá para imaginar que por ser branca é uma coisa positiva. Na verdade, toda inveja é negativa: a branca, a azul, a parda, a mulata… Porque a inveja não é exatamente eu querer seu carro, mas não tolerar a alegria que você sente ao dirigi-lo. Como somos animais gregários, que vivem em bandos, e cada vez mais há pessoas que têm mais dinheiro, um corpo mais bonito ou são mais felizes do que eu, preciso ser muito bem resolvido para não ceder à tentação da inveja. Como quase ninguém é bem resolvido, a começar por mim, o resultado é que estamos imersos em um mar de inveja. Mas a gente disfarça.
A inveja jamais se refere a alguém distante. Invejamos o próximo. Porém, vivemos em uma era de relações virtuais com a profusão de redes sociais como o Instagram e o Facebook, onde todos parecem tão felizes e bem-sucedidos. Como essa novas ferramentas de comunicação ampliaram nossa capacidade de invejar?
Acho que neste momento as pessoas já notaram que o Facebook é um “Fakebook”, que representa a vida que eu gostaria de ter e não a que eu tenho. Elas já estão cansando dessa felicidade plena de quem comunica a banalidade de seu cotidiano o tempo todo. Este mundo líquido, a que o Zygmunt Bauman alude, essa sociabilidade social começa a tocar nos seus limites. Neste momento, até as ofensas começam a ser reguladas pelo Poder Judiciário. Na internet, as pessoas estão expostas, mas a inveja só pode ocorrer genuinamente por alguém próximo. Não tenho inveja do dinheiro que tinha Salomão, do poder de Júlio Cesar, mas sinto inveja do cunhado, do irmão e do vizinho. A inveja é essencialmente comparativa. Não importa que eu ganhe X ou Y, o que importa é que eu ganhe mais do que as pessoas que me cercam. Somos todos invejosos, especialmente aquelas pessoas perigosas que dizem que não têm inveja de ninguém. Essas são as que a gente precisa ter mais cuidado.
São nos momentos bons ou ruins que conhecemos nossos verdadeiros amigos?
Amigos a gente só conhece nos momentos de sucesso. O fracasso, em uma sociedade predominantemente cristã como a brasileira, provoca pelo menos expressões de consternação e solidariedade. “Perdi minha mãe”, “estou com câncer”, “meu carro bateu” ou “minha casa queimou” são situações que despertam a solidariedade alheia. Agora experimente dizer no trabalho ou na família que comprou um “carro maravilhoso”, que “a vida é ótima” ou que “o corpo está melhor do que nunca”. Os rostos vão se virar. É o sucesso que incomoda. O fracasso, pelo contrário, nos alegra. Há uma onda de júbilo na internet pela queda do empresário Eike Batista. Não se perdoava que alguém fosse tão rico, poderoso e influente. O êxito dele incomodava muito as pessoas.
Tom Jobim disse uma frase que ficou célebre: “fazer sucesso no Brasil é ofensa pessoal”. Somos mesmo um país de invejosos?
A inveja é universal, mas em cada lugar ela aparece de uma forma. Como no Brasil temos uma rede de solidariedade – que em outras palavras significa que cuidamos muito da vida alheia – isso faz com que a inveja aqui seja mais declarada. Em sociedades mais isolacionistas, como no norte da Europa, a inveja existe, mas se consome dentro do lar. A inveja é universal porque ela é uma maneira de dizer que o problema é o outro que tem demais e não admitir que fui eu que não tive competência para conquistar as coisas.
A maioria da pessoas se considera invejada, mas não invejosa. Como reconhecer o objeto da nossa inveja pode nos ajudar no autoconhecimento?
Do ponto de vista psicanalítico ou socrático, afirmar-se pecador é fundamental. Sempre estamos supondo que o problema está no outro. Uma das coisas mais notáveis é que por mais falida, feia e ruim que uma pessoa seja, ela ainda assim acredita que é invejada. É quase exótico. As pessoas se acham alvo de inveja até porque ela também é uma forma de homenagem. Sentir-se invejado é uma forma de louvar o que se tem. É a frase clássica picareta da cartomante: você é muito invejado. Neste momento, a pessoa sorri e entende. Isso funciona sempre.
Do que o senhor tem inveja?
Nossa, de muitas coisas (risos). De gente que trabalha menos que eu e é feliz. Pessoas que comem o que querem e não engordam. Tenho muita, mas muita raiva de quem não se esforça e tem corpo ótimo. De pessoas que têm habilidades naturais e não por esforço. Quer dizer, de dezenas de coisas. Fico doido de inveja quando vejo pessoas com tais habilidades que luto tanto para ter.
(Autor: Renato Queiroz)
(Fonte: www.opopular.com.br)
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