Há um ditado que diz que a arte imita a vida. Entretanto, por vezes acontece o contrário: a vida imita a arte. Um dos exemplos que confirmam isso é o livro “Ensaio Sobre Cegueira”, obra do gênio português José Saramago, já que – assim como no livro – estamos cada vez mais mergulhados em uma cegueira que torna insustentável (ou impraticável) o mínimo de humanidade que nos constitui ou deveria nos constituir.
A “cegueira branca” ou a “dura pele” a que chamamos egoísmo, infelizmente, não é uma realidade apenas “saramanguiana”. Ela está em cada um de nós, pelo menos em potencial, de modo a tornar-se evidente e quantitativamente grande em um piscar de olhos, com o perdão do trocadilho. Dessa forma, basta que alimentemos o lado escuro do coração, para que os olhos passem a não enxergar além do próprio ego ou do próprio umbigo.
A questão que se coloca, diante disso, é se o mundo no qual vivemos oferece condições suficientes para que a lucidez seja mantida. Na estória do português, as condições não são das mais favoráveis, tanto que apenas uma pessoa – a mulher do médico – permanece lúcida, sem cegar, ou melhor: “Com a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Na nossa sociedade, parece que as condições não são tão diferentes, afinal o egoísmo e o individualismo são consagrados ininterruptamente como valores supremos e absolutos, de tal maneira que ser cego é a regra, enquanto a lucidez é uma rara exceção.
Apesar da realidade sombria e dificultosa, é possível se manter lúcido. Mais que isso: é condição imprescindível para que o que ainda resta de humanidade entre nós não escoe pelo ralo. Evidentemente, não é fácil. Se fosse, “Ensaio sobre a Cegueira” sequer existiria ou, no mínimo, teríamos mais do que apenas “a mulher do médico” como ser que consegue enxergar. No entanto, é necessário entender que cada um possui responsabilidade pela parte que lhe cabe no mundo, inclusive, para que a sua própria existência possa ser garantida.
Sendo assim, é uma enorme falta de racionalidade, ou deturpação desta, acreditar que um mundo construído em cima de fundamentos tão desumanizadores, como o egoísmo, possa ter qualquer tipo de sustentação. Mais hora, menos hora, ele vem abaixo. Rachaduras enormes e aos montes já são perceptíveis, pelo menos, para quem ainda consegue ou quer enxergar.
Na realidade do livro, de repente as pessoas voltam a enxergar, como se nunca tivessem cegado, como se fossem cegos que vendo, não veem. Penso que é exatamente assim que estamos: acreditando enxergar, quando já estamos cegos, presos em armadilhas que diariamente ajudamos a construir. Resta saber, quantos ainda permanecem enxergando, contrapondo-se à ordem destrutiva do mundo e assumindo a responsabilidade de manter a lucidez em mundo dominado por c(egos).
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Ótima resenha. Li o livro e assisti ao filme. Ambos excelentes e falam exatamente disso. Parabéns.