Cotidiano

Sobre mortes naturais e suicídios simbólicos

Ando pensando se me descobri ou se me reinventei. Caso tenha me descoberto, sofri uma morte natural. Caso tenha me reinventado, cometi um suicídio simbólico.

Penso também se me importa saber o que realmente aconteceu. Se deixei para trás sonhos com data de validade vencida ou se simplesmente me toquei que tais sonhos não eram meus. De uma forma ou de outra, o passado é passado e o que eu não vivi está definitivamente perdido, para o meu bem ou para o meu mal.

Talvez o que realmente importe seja este gosto de vinho branco dançando na minha alma e este frenesi de beijo romântico tatuado na pele da minha mais intensa intimidade.

Fecho os olhos e gemo baixinho, com um sorriso meio sarcástico, imaginando que nada realmente importa. Ir para a direita ou para a esquerda. Subir o morro ou me estirar na praia. Pouco importa me atirar de penhascos interiores ou me deixar boiar em águas tranquilas.

Sinto que deságua em mim com a simplicidade daquilo que não precisava acontecer. O acaso é o maior destino. Você não necessitava nem devia acontecer, mas mesmo assim aconteceu e eu me deixo levar por esta casualidade com gosto de sushi compartilhado num final de domingo banal.

Quase sempre pegamos a direção errada na estação do metrô. O amor é o mais lúdico e trágico dos acidentes.

Gosto do seu jeito blasé. Fone de ouvidos. Mochila jogada nos ombros. Barba por fazer. Misto de preguiça com vontade de crescer. Gosto do meu jeito blasé. Sempre atenta. Bolsa nas mãos. Um sorriso de canto de boca. Misto de desilusão com vontade de ser o que não sou ou ser aquilo que finjo não ser.

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Sou mais pura do que os jovens pensam que sou e mais obscena do que os mais velhos avaliam. Sou tudo o que está entre a imaginação de todos. Sou nada. Vácuo. Poesia recitada por uma voz embriagada numa cidade dizimada.

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Sou o que não pode ser dito. O que dorme calmamente no vazio. Sou o olhar cansado e perdido quando as palavras me fogem, quando saco a última frase de efeito.

Sou aquela que quer e não quer partir no último beijo dado no metrô. Sou aquela que se mantém nos braços das suas lembranças e sou também a outra que sai apressada pela plataforma. Amar extenua…

Sinto saudade mesmo quando estou em seus braços. Talvez, sinta saudade do minuto passado, daquilo que nunca mais poderemos sentir nem viver. Talvez, sinta saudade daquilo que só imaginei ou daquilo que poderia ter sido saboreado com molho de pimenta.

Sinto saudade daquilo que estou vivendo pois sei que qualquer parte do sentido, pois sinto que qualquer parte sua me escapa pelas brechas dos meus abismos. Tento te reter em uma palavra de amor… Inútil! O amor não cabe em nenhuma palavra. O amor é perplexidade e certeza lançadas no caos.

Me embriago com minha bagunça interior. Deito sobre lençóis amarfanhados e sorvo uma gota de café já frio antes de adormecer feliz.

Sílvia Marques

Profa. doutora , idealizadora da Pós em Cinema do Complexo FMU, escritora e psicanalista. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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