Saúde

“Síndrome do Sofrimento Posterior”

Sofro da “Síndrome do Sofrimento Posterior”. Lido bem com as situações de crise, desde que eu tenha liberdade suficiente para chorar depois. Na hora do acontecimento, mantenho a calma, raciocínio devagar, controlo a respiração, faço o que for preciso sem afobação.

Ajudo o doente, ligo para o hospital com a maior destreza do mundo. Aviso a família com a cautela que previne o susto. Passo o café. Escondo o tremor da voz. Atendo todas as ligações e conto a mesma história quinhentas e setenta e sete vezes com paciência de monge. Distribuo água, digo as palavras certas, acalmo os desesperados, consolo os tristes e fico atenta a cada movimento do doente até o socorro chegar. Cumpro todas as etapas com louvor.

Os braços se multiplicam para alcançar os que choram ao meu lado. Dissolvo as lágrimas de tanto apertá-las contra as paredes da retina. Não posso me desmanchar antes de receber a notícia de que tudo não passou de um susto, e que agora já é possível desembrulhar os cobertores e dormir em paz.

O paciente recebe alta, se liberta das gazes, das parafernálias que o prendem ao soro e eu sento e choro desesperadamente. Choro o susto atrasado, sofro com as lágrimas que amarrotaram as faces dos amigos, com os olhares apreensivos na sala de espera.

Sofro o déjà-vu da notícia, o flasback do sinistro, mesmo sem querer. Sem programar. Sem procurar por isso. A repetição é automática. Por mais que eu me previna tentando não ceder, dou de cara com a reconstituição da quase tragédia. O susto de antes vira o fantasma de agora, e não consigo dar corda na noite. Sonhar é impossível. Cochilo e lá vem o “making of” do filme ruim, a lágrima desce espessa e o soluço acompanha o cortejo do sofrimento posterior.

Leia Mais: Permissão para chorar

Vejo todos os rostos envolvidos voltando para casa depois do dia difícil. As vozes se despedindo calmas, os abraços cercando os corpos e as carícias adornando os adeuses. O meu quarto vira ala de hospital; ouço o barulho das macas no corredor, as conversas das enfermeiras que cochicham sobre a medicação do paciente do quarto x…. Tudo se agiganta dentro da minha mente insone.

Ouço todos os sons com uma nitidez absurda. A dor do paciente que precisa de remédio para adormecer afugenta meu sonho. Consigo ouvir o soro pingando. Sofro por ele, aquele senhor que ficou sozinho. Penso naquela moça que ia fazer o exame decisivo. Será que alguém da família apareceu para acompanhá-la? E se ela não tiver ninguém? Recupero todas as fisionomias, os prontuários de todos os pacientes.

Fico impaciente por só poder rebobinar os eventos e não ter acesso à edição. Quero eliminar as dores, botar uma alegria bonita no rosto daquela gente que só conheci de passagem, mas que deixou em mim dores de uma vida inteira.

Sei que o sofrimento transitório me faz pensar nos que o tem diariamente, como um membro do qual não podem se livrar. O dia amanhece lento, manchado com a agonia da noite anterior.

Aos poucos, os uniformes brancos vão se dispersando no clarão que invade a janela, as lágrimas secam no varal do meu rosto cansado. Os dias sacodem as memórias hospitalares. Começo a “Campanha de Prevenção contra novos Sustos”, e tento, na medida do possível, aguardar com serenidade que nada mais aconteça.

Ester Chaves

Ester Chaves é escritora brasiliense. Graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília e Pós-Graduada em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Atuante na vida cultural da cidade, participou de vários eventos poético-musicais. Já teve textos publicados em jornais e revistas. É colunista do site “Fãs da Psicanálise”.

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