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Sentir a dor ou sofrer?

É característica primitiva do funcionamento mental a de evitar desconfortos à qualquer custo e Sigmund Freud (1856 – 1939) bem nos orientou sobre isso em seu texto FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, de 1911. Tanto na predominância do funcionamento mental dos bebês, quanto em certa cota do funcionamento do adulto, a tolerância ao sofrimento é capacidade pouco frequente no ser humano comum e menos ainda no sujeito quando adoecido ou perturbado.

O termo “sofrer” tem, pelo menos na língua portuguesa, usos distintos em seu significado e esse ensaio busca a reflexão dessa diferenciação, geradora de equívocos, em potencial. O conceito de sofrimento pode ser encontrado na tentativa de indicar o ato de sentir dor, sendo ela física ou psíquica. Nesse aspecto do termo, o sofrimento diz respeito à experiência de padecer por certa agonia. Por outro lado temos o termo no sentido de “passar por”, ou ainda “experimentar”. A partir desse segundo vértice, o conceito diz respeito à experiência de movimento, indicando mudança e transformação, num “sofrer o processo”.

A dor deve acontecer, a priori, independente da escolha, a não ser que seja infligida pelo próprio sujeito, num ato de auto-agressão, onde o sujeito opta por sentir dor. Em se tratando da dor que acomete sem que seja provocada é possível tão somente escolher não sofrê-la, entretanto, isso não garante que deixe de existir. Na realidade, pode acontecer que a dor se potencialize por ser ignorada. Assim como Freud apoia que a libido se manifesta através da pulsão de vida, impulsionando o sujeito numa busca constante, antes dele, Athur Schopenhauer (1788 – 1860) via a vontade como algo que reclama satisfação, mas que, no entanto, nenhum fim alcançado pode colocar fim.

Schopenhauer propõe que, “de acordo com o conjunto dos nossos pontos de vista, a vontade é, não somente livre, mas também onipotente…” (SCHOPENHAUER, 1819). Esse importante filósofo, que tanto inspirou Freud na elaboração dos pressupostos psicanalíticos relaciona o sofrer com a vontade e afirma que: “Quando surge um obstáculo entre ela e o seu escopo momentâneo, chamamos a tal obstáculo sofrimento; seu bom sucesso ao invés é o que chamamos satisfação, bem-estar, felicidade.”. (SCHOPENHAUER, 1819). A vontade de viver é, então, segundo a perspectiva de Schopenhauer, fonte de sofrimento, incidindo que viver é sofrer.

Sendo o sofrimento inseparável da própria vida, aquele que busca a todo custo, evitar sofrimentos, acaba por encontrar a morte. Grande parte das queixas que chegam aos consultórios psiquiátricos está enquadrada em certa demanda muito mais adequada às psicoterapias do que à administração medicamentosa. São demandas de reconhecimento de elementos não pensados e que carecem serem assim submetidos ao processo de reflexão. Elementos que são geradores de desconforto como sinal da necessidade de serem elaborados.

Nesses casos, depois de medicado o sujeito perde grande chance de ser tratado pelo processo psicoterapêutico, já que o desconforto emocional (dor) que é o sinal da necessidade de transformação e configura-se na grande motivação para o exercício do pensar, diminui drasticamente ou mesmo cessa. Isso, pois a introdução do medicamento deve diminuir a dor. Mesmo em psicoterapia é muito comum a procura por tratamentos psicoterapêuticos que prometam algum método em que não se tenha que sofrer.

Leia Mais: A dor da hipersensibilidade…

Em sua obra ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, Wilfred R. Bion (1897 – 1979) chama a atenção para certos pacientes que apresentam maior dificuldade no contato com a realidade em seu próprio estado mental. Essa ordem de pacientes apresenta tamanha intolerância a dor ou a frustração, “que elas sentem a dor, mas não a sofrem; assim, não é possível dizer que elas descobrem a dor.”. (Bion, 1970). Não se permitindo sofrer, o processo psicoterapêutico fica obstruído em inúmeros aspectos. No sujeito que se encontre nessa situação, resistências devem se erguer sempre que algum elemento surja no sentido de revelar conflitos que gerem desconforto e assim careçam de serem sofridos para que haja elaboração.

“O paciente que não sofre dor fracassa em ‘sofrer’ prazer, o que lhe nega o incentivo que de outro modo poderia ser proveniente de algum alívio acidental ou intrínseco.”. (Bion, 1970). O sujeito pode experimentar da dor, mas se recusa a sofrê-la. Ainda que pareça sofrer ou mesmo verbalizar que esteja sofrendo, ainda assim está somente sentindo a dor, mas não a sofrendo, por medo de sofrer. “A intensidade da dor do paciente é um fator contribuinte para seu medo de sentir dor.”. (Bion,1970). Fugindo de sofrer a dor, só faz por potencializá-la, além de impedir que o processo se realize.

Sofrer implica em transformação e as transformações no nível psíquico não têm retorno. Esse é um motivo obstrutor da predisposição para que a transformação possa fluir. Uma vez desenvolvida a cota de maturidade não pode haver retrocesso em que cada passo em frente, no amadurecimento configura-se na renúncia de formas imaturas de funcionamento. A imaturidade emocional é caracterizada pela busca desmedida do prazer, assim como na evitação a todo custo das frustrações, enquanto o amadurecimento implica em sofrimento.

Para SCHOPENHAUER os anseios nascem da necessidade que se manifesta como desagrado. Para esse pensador há, “… sofrimento até que tal aspiração não seja satisfeita; mas não existe satisfação durável: esta não é senão o ponto de partida duma nova aspiração, sempre embargada por toda maneira, sempre lutando, portanto, sempre causa de dor: para ela jamais um escopo final, jamais para ela um limite ou termo de sofrimento.”. (SCHOPENHAUER, em O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO, 1819).

Schopenhauer, reconhece a vontade como o fator incognoscível, assim como Immanuel Kant (1724 — 1804) propunha sobre a coisa-em-si. Mas, que apesar de ser incognoscível é, para Schopenhauer, experienciável, no que ele se afasta da proposta de Kant. Por outro lado, Schopenhauerse aproxima do pensamento oriental, das escrituras védicas e budistas, que pelo vértice religioso, percebe o mundo sensível na materialidade das coisas, como ilusão (Maya) que mascara uma realidade que é una e transcendente.

Buda ensinou sobre As Quatro Nobres Verdades, referentes ao sofrimento que estão no cerne da vida. Na tradução do sânscrito dukkha, mais especificamente insatisfação. A imaginação de que existam formas que propiciem o crescimento sem que haja sofrimento, é sustentada pela incapacidade de se responsabilizar pela maturação dos processos mentais, que governa o desenvolvimento da personalidade.

FREUD. S. FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas – Edição Standard Brasileira, IMAGO (1980), 1911.
SCHOPENHAUER, Arthur. O MUNDO COMO VONTADE E COMO REPRESENTAÇÃO. Tradução Heraldo Barbuy. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1819/2012.
SUTRA AVATAMSAKA (Sutra da Guirlanda de Flores), Capítulo 2 do livro BUDISMO SIGNIFICADOS PROFUNDOS, Venerável Mestre HsingYün, Escrituras Editora, 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, dezembro de 2011.

(Autor: Prof. Renato Dias Martino)

(Fonte: pensar-seasi-mesmo)

*Texto publicado com autorização do autor.

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