Considerações Primordiais
A respeito da Consciência Freud enunciou-a inicialmente em termos neurofisiológicos, no Projeto Para Uma Psicologia Científica (1895), enfatizando-a como sendo a percepção do meio ambiente e do impacto desta percepção sobre o indivíduo. Chamava-a de Sistema Percepção-Consciência. Referia-se mais especificamente ao sistema sensorial e seus respectivos órgãos de sentido. Já falava de excitações endógenas mas a elas e aos instintos dava pouca dimensão, considerando-os, então, como reativos aos estímulos externos.
Mas à Consciência atribuía um papel de “barreira de contato”, que era o filtro fornecido pela consciência de uma percepção exagerada anterior, dando ao indivíduo uma referência de defesa contra estímulos parecidos. Aí Freud percebeu que haveria a necessidade de um “depósito”, de uma “memória” mental para guardar, armazenar tais experiências. Já começava a sentir um descontentamento com este seu trabalho, que não localizava onde e como esta armazenagem se processava. Freud pensava no Indivíduo versus Mundo Externo; o que aquele pode extrair de bom e evitar de ruim neste.
A Consciência foi se formando, então, a partir das interdições que começaram a ser impostas ao indivíduo para a sobrevivência harmoniosa (ou pelo menos sustentável) do grupo humano, fundamentando a sociedade. Darei um salto de anos em relação ao pioneiro trabalho de Freud já citado para tentar uma clarificação. Embora neurologicamente corretas, as conclusões de Freud no estudo acima citado nunca o convenceram por completo. Assim, suas reflexões foram se ampliando ao longo de obras marcantes para a compreensão do aparelho psíquico, termo que cunhou para melhor expor suas teorias , um tanto mais liberto do conceito de Sistema Nervoso Central.
A maturação conceitual passou pelas obras seminais da “Interpretação dos Sonhos” (1900), “Dois Princípios Fundamentais do Funcionamento Mental”(1911), “Metapsicologia” (1915), “Além do Princípio do Prazer” (1920), “O Ego e Id” (1923) e, finalmente, retomando o tema da Consciência de forma enfática, aporta-se no “Esboço de Psicanálise” (1938) e publicado postumamente em 1950.Repare-se que este detalhamento é interessante, pois o tema Consciência está mais enfaticamente na primeira e na última obra dele.
O percurso é mais ou menos assim: nascendo muito incompleto e em Estado de Desamparo, o bebê humano interage com o meio externo nos sentidos de captá-lo, apreendê-lo, mas também dele defender-se através de sinais, mais comumente o choro. Mas chora também por sensações advindas de seu mundo interno, como fome, sede, calor e frio, como o faz ao chegar-lhe sons estranhos, luminosidades que o incomodem e sensações táteis desconhecidas ou dolorosas; e o faz também pela endopercepção (conscientização) de mal-estares viscerais.
A Consciência então também é acionada pelo mundo interno. E todas estas manifestações são fruto de demandas dos Instintos de Autoconservação, que desencadeiam aquelas sensações por necessidades instintivas. Vai tornando-se patente a existência e relevância de um Sistema Inconsciente, que não é de oposição em si ao Sistema Consciente (= Percepção-Consciência), mas de funcionamento distinto.
Enquanto este está voltado para as percepções dos mundos externo e interno como coisa real (Princípio da Realidade), aquele segue o Princípio do Prazer (satisfazer as demandas instintivas e evitar os desprazeres). A memória-armazém mencionada acima passa a ter moradia melhor definida: o Inconsciente, cuja vocação para o prazer passa a acionar mecanismos que visam instrumentar o Consciente (ou Consciência) para evitar repetições de desprazeres. Portanto, insights (lampejos vindos do Inconsciente) ampliam as margens das percepções conscientes. Sonhos também esclarecem ou podem esclarecer e ampliar o campo da consciência.
Foi ficando claro, a partir de Freud, que os instintos, cuja manifestação se expressa livremente nos animais, foram se tornando cada vez mais controlados (portanto censurados e escondidos para o próprio indivíduo) até formarem uma instância “obscura” (justamente porque censurada), em oposição à formação simultânea, compartilhada e “clara” da consciência.
Tanto que aos instintos humanos Freud passou a denominar, em 90% de sua obra, de pulsões, literalmente, para ele, “instintos domesticados”. As pulsões diferem dos instintos fundamentalmente pela influência da civilização, época e meio ambiente em que se é educado (pensemos nas diferenças culturais entre Dinamarca, Sudão, Irã, Suécia, Japão,Somália, Dubai, Brasil etc). Aqui é importante assinalar que os movimentos de censura e controle são resultantes de um acordo entre Id (fonte das pulsões) e Superego (conjunto de leis que nos regem), expressões que Freud introduz em 1923; e este acordo vai passar pelo Ego.
Apesar de algo repressivo, tal acordo é um avanço evolutivo especificamente da espécie humana, coisa já assinalada. O Homem adquiriu este privilégio, mas, com ele, nosso “direito” às neuroses, quanto mais superficial seja o acordo entre a quelas instâncias .Na espécie criou-se pulsionalmente o Amor, mas com ele a busca contínua da felicidade, qualquer que seja o conceito que se tenha deste estado psíquico.
Freud entende corretamente que o bebê humano é quase que ID puro, e que deste brotará o Ego, pelos estímulos do mundo externo. Compartilho com vocês a linda frase de Freud a respeito: “Ubis Id erat, Ego sum”. Em tradução livre, Onde Id era, Eu me torno. A instância Superego será fruto da educação doméstica, escolástica, social e religiosa, incidindo sobre o Ego. Este terá que administrar as demandas do Id e as exigências do Superego.
Mas, felizmente, há brechas na obra freudiana. Talvez por serem um tanto óbvias, Freud não se ateve a uma, chamemos, Teoria das Emoções. Emoções muito parecidas com as nossas a Antropologia comprova que os chimpanzés têm: alegria, medo, raiva, gosto por jogos, tendência gregária, sentimento de falta, etc.
Embora não se aplique necessariamente aos chimpanzés , dou-lhes um exemplo: se eu digo a alguém “- Ouvi ontem o Concerto n°5 para Piano e Orquestra do Beethoven e foi ótimo”. Ponto. E é ponto mesmo, pois é uma emoção pura em si, em área isenta de conflitos ou coisa parecida.
Para Freud o processo da conscientização é bem complexo, no sentido de riqueza de detalhes, envolvendo ao todo três instâncias: o Superego, o Id e o Ego – e até o “eu”, como o sujeito que sintetiza os três e exerce a intermediação com o meio social.
Acrescento também que alguns Sentimentos podem acontecer por si, brotar espontaneamente. Freud estava muito envolvido com os estudos clínicos das neuroses, mas ele mesmo admitia pulsões compatíveis com o Ego, portanto, ego-sintônicas.
Por termos à disposição a obra freudiana, podemos dar-nos ao luxo (arriscado) de por vezes condensá-la ou mesmo torná-la mais clara ou mais simples a um entendimento comum. E, em algum ponto, até contestá-la, por que não? E exatamente por não ser uma obra fechada em si.
Por exemplo, penso a criatividade artística amadorística de uma forma distinta daquela do mestre. Acho que Freud demonstrou sua necessidade de debatedores efetivos, com os quais não contava à sua época. Um grande número de suas Conferências, com apartes contestadores interessantíssimos e por vezes brilhantes, na realidade ele escreveu sozinho e se aparteou. À sua maneira, veja como ele necessitava do outro, do crítico.
Uma última observação: no seu trabalho de 1940, seu último livro, ele retoma a questão da Consciência (ou Consciente) e diz, numa passagem: “O ponto de partida para investigar a estrutura do sistema psíquico é proporcionado por um fato sem paralelo, que desafia ainda toda explicação ou descrição: o fato da consciência.”
Outros Aportes Possíveis Sobre a Consciência.
1. O que é a Consciência?
A Consciência (estar cônscio de) é o conhecimento que resulta da percepção da diferença. Este processo se coaduna e como que complementa o que foi dito anteriormente: o senso inato do próprio corpo em meio ao habitat é, ainda que de modo muito primário e inicial, o senso de realidade da existência, o fundamento do real como uma noção dada por princípio.
Na sequência, o eu e o outro se formam na representação. Essas duas posições, interdependentes nas suas estruturas, compreendem o olhar que vê o eu e o outro, a partir das duas
posições cruzadas, de tal forma que o eu é o eu sob o olhar do outro, assim como o outro é o outro sob o olhar do eu. Esse olhar é o testemunho do eu através do outro e do outro através do eu: a consciência.
2)Como é que um objeto da representação pode ter um “olhar que vê”?
Autoconsciência: sei que sou, mas (não) sei quem sou.“Não há ninguém que não seja estranho para si mesmo” (Nietzsche )
Suponhamos que aqueles argumentos iniciais estejam corretos. Prosseguindo, observamos que, diferentemente de todos os outros objetos particulares que são contingentes na representação, o corpo, núcleo ou raiz que deu origem à representação do eu, é um objeto permanente no processo, tanto quanto o outro, não enquanto um objeto qualquer, mas quando semelhante ao eu, dada a interdependência das estruturas. (cit. 1). Por outro lado, o lugar do outro na representação (onde se alternam os objetos contingentes) também é permanente, pois, na ausência dos objetos da realidade externa ao organismo, a mente não encontraria nada para representar e o pensamento não poderia ocorrer.
Ao mesmo tempo, em razão das estruturas, se o eu, como representação, carrega um olhar que é do corpo (“ver” é uma sensação do organismo), o outro, enquanto semelhante ao eu, também está carregado de olhar e significações.
Desse olhar do eu e do outro, resulta por fim um amálgama no qual o olhar do eu está lá para ver o outro, assim como o olhar do outro está lá para ver o eu, em uma relação cruzada de testemunho que se torna explícito, primeiro na representação, em seguida na arena compartilhada da linguagem.O eu só é um eu sob o olhar do outro, assim como o outro só é um outro sob o olhar do eu.. É esse olhar do outro, através do qual o eu testemunha a si mesmo, que chamamos autoconsciência.
Dadas a experiência única do próprio corpo como objeto real inicial, a representação desse corpo como um eu e a relação estrutural e interdependente do eu com o outro, nenhum entrelaçamento é tão íntimo e radical quanto esse em todo o processo de representação.
A Fala Como Acesso à Consciência
A Consciência, senso latu, é inerente a seres vivos capazes de captarem sensações de prazer e desprazer. Já a Consciência na visão psicanalitica, senso strictu, é a evolução para a percepção não só das sensações, afetos e necessidades, mas também da complexa construção do processo de pensamento por associação de ideias; aqui já se trata da espécie humana. Vamos tentar ver o percurso desta.
Numa de suas primeiras abordagens sobre a consciência, Freud caracteriza-a como “órgão sensorial para a apreensão de qualidades psíquicas”. Ao atribuirmos um psiquismo ao ser humano, somente podemos fazê-lo a partir da noção da existência de uma Consciência, que é também a chave para a evolução do psiquismo.
Durante um período da vida, somente as sensações provenientes da série prazer-desprazer corporal eram percebidos (conscientizados). Portanto, de início um captador de sensações (um processo primário). Com a evolução, surge o processo secundário, que vai implicar no brotamento da razão, captação mais plena do mundo externo, um processo evolutivo mas que traz também um necessário desconforto : o reconhecimento de novos perigos à vida e a necessidade de aprimorar-se o acesso à consciência para melhor preservá-la.
Possivelmente, neste estágio, o caminho encontrado pelo processo secundário para o acesso à consciência foi a ligação aos registros mnêmicos da fala provinda dos objetos. Usar o aparelho fonador para reproduzir o que é ouvido é um exercício muscular, corporal. Ao conseguir retornar, inicialmente apenas sons imitativos e, depois, as falas dos objetos, este exercício do falar vai possibilitar ao processo secundário passar a perceber afetos, que também vão ser acolhidos ao plano consciente. E aqui o objeto, até então somente percebido pela sua presença física, vai gradativamente sendo percebido também de forma abstrata, pois o registro passou a ser duplo: audição da fala do objeto e o registro mnêmico desta fala possibilitando ser reproduzido pelo sujeito; além das próprias imagens do objeto e do sujeito falando.
O objeto vai sendo então internalizado e pode ser evocado mesmo quando fisicamente ausente. Enfim, antes só real enquanto captado pelos órgãos do sentido, passa a ser sentido também pela reprodução da sua fala. A fala do objeto atribui significados às coisas; ao reproduzir em escala crescente este mecanismo da fala, a associação destes significados (representações, ideias) torna-se sensorial, o que equivale dizer que o pensamento vai adquirindo qualidade psíquica.
Temos então a criação do objeto interno e assim o psiquismo, ipso fato. O que equivale dizer a capacidade de se perceber (tornar consciente) uma realidade interna, simbólica, virtual ou abstrata. Vai se ampliando o campo da consciência, já contando com uma estrutura também ideativa (conquanto a sensorial, filogenética, já existisse e já aprimorada na espécie humana).
Daí a se perceber o objeto através da palavra, simbolicamente, é um pulo.
E, coisa também que se apontar: teremos aqui outra vez um duplo registro mnêmico, permitindo uma distinção da fala do sujeito e a
do objeto, mesmo quando referindo-se à mesma ideia ou representação : daí vem (ou começa a vir) a noção de si mesmo e a do outro; auto e alo-percepção. Gosto muito da expressão ipseidade para referir-se ao si próprio (ou si mesmo, o self da língua inglesa).
É possível que estas considerações tenham ficado muito concisas, mas, se conseguirmos condensar os pontos nucleares da exposição acima, temos uma ideia razoável do que seja a conceituação psicanalítica da Consciência no homem, ápice da sua trajetória evolutiva e um de seus fatores distintivos.