O fenômeno
Quanto tempo dura uma análise?
Esta tem sido, diríamos, desde que a psicanálise existe, uma das mais insistentes perguntas que se repete nas bocas de seus adeptos ou de seus críticos.
Contrariando a lei do: “obter mais resultado em menos tempo com menor custo”, o tempo de uma análise tem se mostrado, no progredir de sua história, cada vez maior.
Fica longe o sonho de uma análise restrita a um só encontro, como o de Catarina com Freud no alto da montanha. Quatro, oito, doze anos ou mais? Não é possível estabelecermos um tempo médio. Uma análise é longa; nisto todos estão de acordo.
O tempo de uma análise está idealmente associado à concepção vigente do final do tratamento. Terapia, remoção do mal estar, identificação ao analista, travessia do fantasma, savoir-faire com o sintoma, etc, etc – são algumas das idéias divisoras de águas quanto ao objetivo e ao tempo implicados.
E ainda, se até aqui falamos em “análise” no singular, devemos acrescentar que o problema atual do tempo da análise também se refere ao número de análises que uma pessoa faz, o que não raro atinge hoje em dia três ou quatro.
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Neste breve artigo proponho destacar um aspecto particular desta questão: aquilo a que em nosso meio estamos designando como “re-análise”. As re-análises têm crescido tanto em número que a meu ver merecem o destaque de fenômeno: o fenômeno das re-análises. Associo este fato ao surgimento de Escolas, na concepção lacaniana, em várias partes da Europa e da América Latina, nos últimos treze anos.
Embora sob esta denominação de “re-análise” parece estarmos frente a um fato novo, a retomada de análise é algo já descrito por Freud, como é do conhecimento geral. Proponho-me verificar como evolui esta questão do ponto em que Freud a deixou e até que chegue a nós, passando por Lacan.
Em Freud
No seu texto da maturidade: “Análise finita e infinita”, ou “terminável ou interminável” como foi traduzido, é nesses termos que Freud se refere: “Todo analista deveria periodicamente – com intervalos de aproximadamente cinco anos – submeter-se mais uma vez à análise, sem se sentir envergonhado por tomar esta medida”.
O termo “periodicamente” faz pensar numa seqüência repetitiva: análise, parada, análise, parada… e o “não ter vergonha”, é seguramente, uma lembrança do aspecto infinito da análise referido no título desse famoso trabalho. Por ser um elemento da estrutura, o infinito não deve em decorrência ser visto como um defeito ou impotência vergonhosos a um analista mas como um impossível próprio à experiência analítica, que se propõe a tudo dizer.
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Mas por que a cada cinco anos? Talvez por ter sido este o tempo que Freud pensou que uma pessoa fosse capaz de se manter sujeita ao inconsciente, antes de se reacomodar em novas formações sintomáticas adaptativas: daí a necessidade de retomar a análise intermitentemente, pois o tempo faz sintoma.
Vejo haver aí uma diferença importante com Lacan, que pretendo esclarecer: a instituição proposta por Freud para acolher os analistas, sua Sociedade, é acomodativa, enquanto que a proposta por Lacan, sua Escola, é incomodativa. Assim sendo, uma Sociedade seria sintética, enquanto uma Escola, analítica.
Os membros de uma Sociedade deveriam retomar uma análise a cada cinco anos para acordar, enquanto que uma Escola prolongaria os efeitos da clínica e manteria os sujeitos despertos ao inconsciente. Penso que essa diferença se esclarece ao entendermos o final da análise em Freud – como Edipiano e sua sociedade estabelecida em um modo de organização paternal. Lacan, diferentemente, pretende levar uma análise para além do Édipo e orienta sua Escola não em torno a uma significação unitária, um pai ou um ideal, mas a uma falta radical.
Desde a sua carta a Fliess n.º 71. De 15 de outubro de 1897, onde colocou o Édipo como axioma das ficções neuróticas, até 1937, quarenta anos depois, em “Análise terminável e interminável” verificamos a manutenção deste eixo na obra freudiana. As últimas três páginas deste texto são clássicas; é ali que podemos ler que a análise melhor conduzida encontrará resistência no homem com o protesto masculino e na mulher com a inveja do pênis.
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E as palavras finais de Freud falam de uma esperança: que ao menos as reações posteriores a uma análise sejam diferentes das iniciais.
Esta concepção clínica foi refletida em sua proposta institucional que manteve o pai – no caso, ele mesmo, Freud, como pilar fundamental às custas do adormecimento, como já dito, dos analistas. Isto teve uma vantagem: Freud foi conservado em formol até a releitura lacaniana, a qual precisou romper com a Sociedade para retomar o sentido da verdade freudiana.
Em Lacan
“Ter a experiência de uma psicanálise marca uma passagem, com a condição de ser minha análise do inconsciente, enquanto fundando a função do simbólico, completamente admissível. De fato, aparentemente, eu posso confirmá-lo realmente, o fato de haver transposto uma psicanálise, não poderia ser reconduzido ao estado anterior, exceto praticando um outro corte que seria equivalente a uma contra-psicanálise.
É justamente por isso que Freud insistia que os psicanalistas refizessem o que comumente se chama uma fatia, isto é, que eles façam uma segunda vez um corte, restaurando assim o nó borromeu em sua forma original”.
São estas as frases finais da aula de 14 de dezembro de 1976 do seminário de Lacan, intitulado “L’ insu que sait de l’une-bévue”…
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O que estamos chamando de re-análise é aí chamado de “contra-psicanálise”. É importante notar que ao se referir ao trecho de Freud anteriormente aludido, Lacan substitui ao caráter quase ritualesco de a cada cinco anos retomar uma análise, algo bem mais objetivo e definido, a saber: “fazer uma segunda vez o corte, restaurando assim o nó borromeu em sua forma original”.
Assim, depois de uma primeira análise que levaria a uma superioridade do Simbólico sobre os registros do Imaginário e do Real, seria necessário uma segunda para articular os três registros da forma que convém, sem hierarquia.
Entendo ser esta a apresentação topológica do debate que está presente desde o início dos anos 70, em especial no seminário sobre o Avesso da Psicanálise e no escrito “L´Étourdit”. Há muito tempo já era preocupação de Lacan esclarecer que uma análise deve ultrapassar o Édipo, como referência última da significação do sujeito.
O Édipo, como mito, serviu a Freud para ordenar, para dar uma razão ao que se passava na clínica. Foi e é um ponto fundamental. Ultrapassá-lo não quer dizer desprezá-lo ou desmenti-lo, mas sim que podemos e devemos ir mais além na condução de um tratamento. É o que indica a famosa frase de Lacan: “ir além do pai com a condição de sabermos dele nos servir”.
Manter o Édipo no horizonte de uma análise é correlato a uma concepção idealística do tratamento. A grande virada da psicanálise seria o deslocamento da função do ideal a uma função da causa. Se o ideal fosse conservado como motor da existência a psicanálise seria uma correção de rumo; transformaria enganos em acertos, maus caminhos em bons caminhos e assim apareceria como um bem acabado “ Discurso do Mestre”.
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Ora, o que se pretende não é acabar com o engano mas, ao reconhecê-lo como estrutural, possibilitar a cada analisando a experiência de se orientar pela causa de seu desejo, uma vez que o ideal universal está irremediavelmente furado. É preciso ser tolo frente ao significante, para justamente evitar se perder.
A proposta institucional de Lacan – a Escola – é solidária a seus avanços clínicos e o fato da primeira Escola criada nesse tempo de contra-experiência (contra-análise), após a dissolução, chamar-se Escola da Causa Freudiana, contém o que acabamos de dizer.
Escola e re-análise
Dizia ao começar que verificamos um fenômeno no Campo Freudiano em várias partes do mundo; uma retomada de análise associada à criação de Escolas.
Não é surpreendente. É lógico. A re-análise é coerente á passagem do grupo á Escola. O grupo segue a norma do ideal, do pai, enquanto a Escola, se refere à causa, e assim a criação de uma Escola abre a possibilidade de levar uma análise mais além, lá onde o Simbólico, relativo ao pai, não engloba o Imaginário e o Real.
Não existe um indicador definitivo do término de uma análise mas existem critérios que permitiriam considerá-la como terminada; critérios, no entanto, que podem ser questionados, por exemplo:
1. a qualidade do analista: são muitos os ex-pacientes de Freud e de Lacan que, ou retomaram uma análise, ou a continuaram, após a morte deles, com um ou vários outros analistas.
2. ter feito o passe: alguns colegas que se submeteram a este procedimento, nomeados ou não A.E. (Analista da Escola) retomaram uma análise.
3. ser A.M.E; (Analista Membro da escola): este título de garantia deveria dar mais responsabilidade que dignidade, podendo assim favorecer, em certos casos, a retomada de uma análise.
4. pelo tempo de divã: não quer dizer muito, pois não se trata de envelhecer o paciente.
Poderíamos continuar esta série mas sabemos que ela é inconclusa.
Apostaria, no entanto, em um índice provisório que merecerá futuramente melhor aprofundamento: a implicação no trabalho da Escola é o que deve se seguir ao final da análise.
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É assim que compreendo que nem todos os analistas devam fazer uma re-análise; por sua implicação na lógica da Escola. A Escola não é feita para os não tolos, nem para os espertos, nem para os cínicos.
Quanto ao tempo total de uma análise, que sem dúvida preocupa, acho que a retificação atual da “cultura analítica”, incidência da Escola, deverá demonstrá-lo fora dos critérios do mercado comum dos bens.
1. FREUD, S., “Análise terminável e interminável”, Obras Completas, Edição Standard Brasileira, vol. XXIII, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p.283-284.
2. LACAN, J., Seminário “L’ insu que sait de l’une-bévue s’aile a mourre”. Ornicar? N.º 12-13, Paris, Navarin, p. 15-16.
(Autor: Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra)
(Fonte: Texto apresentado nas Jornadas de Outono da Escola da Causa Freudiana e Escola Européia de Psicanálise “Les temps fait symptôme”, em Paris, setembro de 1993.
Texto publicado na Revista Opção Lacaniana, nº 9, 1994.)