Amor

Quando o amor diz não

Não é porque existe amor que vai ter, necessariamente, final feliz. E não é porque não tem final feliz que vai ser, necessariamente, a pior coisa da sua vida.

À primeira vista pode parecer contraditório. Mas acontece de vez em quando (ou quiçá com mais frequência do que julga nossa vã filosofia): alguns amores simplesmente não conseguem superar as diferenças e as tantas outras barreiras que aceitamos – ou criamos – nesse mundo lotado de máscaras, egos machucados e fardos que pesam mais do que deveriam.

A matéria de que somos constituídos nem sempre encontra lugar para se acomodar na vida do outro, por mais que exista amor. A vida do outro é estruturada por prioridades, valores e urgências que não necessariamente incluem as nossas prioridades, os nossos valores e as nossas urgências.

Mas as diferenças podem ser equacionadas, certo? Sim, é possível; mas não é simples. O caminho do equilíbrio exige pelo menos dois ingredientes básicos: maturidade emocional e muita disposição (digo, muuuuuuuuuita disposição).

A ideia de “cada um andar metade do caminho” é linda, mas em grande medida, utópica. Porque pressupõe que ambos estão igualmente dispostos, e, mais que isso, que ambos têm a mesma percepção do caminho e do abismo que existe no meio dele. Construir pontes, sabemos, não é simples. Até os engenheiros bem sucedidos falham vez ou outra…

O que acontece é que as relações raramente são niveladas. Normalmente um dos lados está mais envolvido, mais disposto. E é esse lado que vai se empenhar mais na construção da ponte. É esse lado que vai vestir o capacete primeiro, se encher de vigor e partir pra ação; vai investir mais tempo, mais paciência, mais expectativas.

E aí, com todo esse cuidado tão presente e tão garantido, o outro lado – que talvez ainda nem tenha encontrado o capacete – acaba se acomodando. Pode parecer injusto, mas é uma reação natural, que também tem muito a ver com a personalidade de cada um. Aquele que está tentando construir a ponte também tem seus ganhos, apesar da sobrecarga de trabalho que poderá arrebatá-lo em algum momento.

O lado que insiste na construção via de regra é também o “compreensivo incondicional” da relação; pode ser ingenuidade, mas ele sempre acredita que é só uma questão de tempo, que em breve o outro vai perceber seu esforço, seu valor, e vai se juntar a ele na construção da ponte. Só que… isso pode não acontecer.

Depois de um tempo – normalmente longo – de insistência, vem o cansaço. Vem o peso de tanto investimento sem retorno, de tanta tristeza e frustração acumuladas, de tantas mágoas sufocadas, de tantas palavras não ouvidas e de tantos desejos respondidos com indiferença.

Leia Mais: Amor é querer a felicidade do outro, mesmo que você não seja mais o motivo dela

Tem muita gente que consegue relevar a assimetria de relações assim em nome do amor – porque sim, o amor ainda existe apesar de tudo. Ele não muda sua natureza, mas vai perdendo a força de combate, a esperança nos tão almejados dias melhores. A gente se dá conta, depois de muito bater cabeça, de que as pessoas não mudam; elas só podem entregar o que de fato possuem – e aí é “pegar ou largar”.

Continuar em relações assim normalmente envolve escolhas muito profundas, que vão além de apostar no amor, pura e simplesmente. Persistir significa aceitar que você vai ter de se anular muitas e muitas vezes; significa aceitar que você vai estar só muitas e muitas vezes; significa aceitar que você vai ter seu mundo incompreendido muitas e muitas vezes. Mas é uma escolha legítima, que muita gente faz com plena consciência e disposição.

Tem gente que, ao contrário, avalia investimento e retorno e acaba desistindo do amor. Dura escolha. Duríssima. Mas igualmente legítima, porque cada um precisa se responsabilizar pela medida da sua felicidade, precisa botar o pé no chão e ser honesto consigo mesmo, com seus sonhos, com seus desejos pra vida, pro futuro.

Leia Mais: Nós nem sempre ficamos com os amores de nossas vidas (e isso é normal)

Os dias vão ter que continuar com o peso de um amor que tinha tudo pra ser, mas não foi. Os passos vão precisar seguir com o peso do desencontro e da ponte que não pôde ser construída. Não existe opção a não ser encarar. Vai doer pra burro, porque como já disse J. Campbell, “a dor do amor não é outra espécie de dor, é a dor da vida. Onde está sua dor está sua vida.”

Não sei quanto tempo leva pra superar, pra consolidar de verdade uma mudança de rota. Mas é preciso acreditar que a vida faz a parte dela se a gente fizer a nossa. Um passo por vez, um dia por vez, uma dor por vez, um avanço por vez. É, afinal de contas, uma oportunidade de reencontro, de ressignificação e de reestruturação. Quem disse que é só a alegria que constrói?

Independente das escolhas que a gente faz, independente se a gente fica pra sempre ou se parte, a oportunidade de conhecer um amor de verdade é grandiosa; viver um amor muda a existência, amplia a alma. E por isso todas as histórias de amor são dignas de gratidão – mesmo as que não têm finais felizes. Finais tristes não excluem a beleza transformadora do amor.

Ainda quando precisamos desistir das histórias nas quais mais investimos, saímos sempre transformados. Saímos sempre ganhando. Saímos sempre mais preparados para, quem sabe um dia, resgatar o capacete do armário, espanar a poeira e nos arriscar na construção de novas pontes e de novas “metades de caminho” – que com sorte poderão ser de fato “metades de caminho”…

Giselle Castro

Graduada em Letras, com MBA na área de Engenharia da Qualidade, não trabalha nem numa área, nem na outra - o que mostra que nem tudo é linear nessa vida. Não é terapeuta, nem psicóloga; está começando a tatear seus caminhos profissionais na astrologia (porque é por ali, no meio das estrelas, que o coração dela estacionou há tempos...). Tirando a parte dos rótulos, ela é apenas uma dessas pessoas que tentam viver com ética, bom humor, leveza e autenticidade - e que nem sempre conseguem, mas continuam tentando. Escrever foi a forma que ela encontrou, desde muito criança, para organizar a bagunça da mente e do coração. Por sorte, tem funcionado desde então. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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  • Texto incrível, perfeito, sem tirar nem por...desses que a gente procura pelo nome do autor. Aprendi seu nome Giselle Castro, meus cumprimentos, meus sinceros parabéns! Sem exagero, uma obra-prima do fim do amor. Vc leu e traduziu. Obrigada por dizer tão bendito, gracias, muitas graças p vc! Parabéns

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Giselle Castro

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