Aqueles dias em que tudo parece estar errado. Aqueles em que torcemos o pé ao descer a escada, derramamos café na roupa que acabamos de vestir, ou discutimos com o colega de trabalho. Aqueles em que somos demitidos depois de anos de dedicação, somos preteridos num concurso para o qual nos preparamos tanto, ou alguém muito querido nos magoa profundamente. O dia em que descobrimos um diagnóstico de câncer que não estava nem perto dos nossos planos para o futuro. Era nesses dias que Roberta* sempre me espantava.
Ela era, é claro, um ponto fora da curva. Esfuziante por natureza, era impossível que passasse despercebida, em qualquer situação. Era vaidosa e preocupada com tudo o que tinha a ver com a aparência, e foi justamente ao se preparar para uma cirurgia estética que descobriu o câncer na mama. Quando a conheci, ainda não sabíamos das metástases no fígado, e essa foi uma das muitas más notícias que precisei dar a ela no decorrer do seu tratamento.
A possibilidade de perder os cabelos. Os efeitos colaterais da quimioterapia. As limitações em seu estilo de vida. As mínimas possibilidades de cura. Roberta recebia as más notícias de forma intensa e até escandalosa, chorando convulsivamente por alguns minutos, jogando-se sobre a mesa do consultório ou segurando-se em algum lugar como se fosse desfalecer. Mas eram apenas minutos, se tanto. Era o tempo que ela precisava para se recompor, olhar fixamente nos meus olhos, respirar fundo e perguntar qual era o próximo passo.
Esse era sempre um momento que me impressionava. Era como se ela incorporasse um novo papel, uma nova personalidade. Era um ritual que a colocava no “modo resiliência”. Vi Roberta fazer isso muitas vezes, mas não precisei de muito tempo para perceber que a primeira impressão que ela transmitia, de uma mulher até um pouco fútil e demasiadamente focada em sua aparência, nada tinha de verdadeira. A personalidade exuberante e exagerada era apenas o formato que ela escolheu para se apresentar ao mundo, mas sua força era muito maior que isso.
Numa das consultas, antes que ela entrasse, vi em seus exames que a quimioterapia não estava funcionando. Essa já era uma suspeita, pois ela não vinha se sentindo muito bem há algumas semanas, mas o aumento rápido dos nódulos no seu fígado não deixava margem a dúvidas. Precisávamos mudar o tratamento com urgência. Ela entrou já com lágrimas nos olhos, e imediatamente me informou que aquele estava sendo um dia difícil, porque seu irmão tinha falecido naquela manhã. O silêncio que se seguiu foi mais que suficiente para que ela compreendesse que as más notícias não parariam por aí. Ela mesma interrompeu nosso silêncio, perguntando se eu lhe daria mais uma bomba para destruir de vez seu dia.
Sua reação, logo após minha confirmação, foi ainda mais histriônica que o habitual. Roberta chorou por mais tempo, soluçou muito, por alguns segundos nem mesmo conseguia falar. Debruçou-se na mesa, olhando para mim de um jeito incrédulo e profundamente triste. Estava tudo errado. O câncer não devia ter piorado. Seu irmão não deveria ter falecido. Ela não deveria estar ali escutando tudo aquilo. Senti em mim o peso da sua dor, e minha vontade era apagar tudo aquilo da vida dela, impedir que ela tivesse que passar por momentos tão dolorosos. Os minutos pareciam se estender por horas, e achei que dessa vez ela não daria conta. Mas, mesmo numa situação tão absurdamente difícil, vi Roberta enxugando seus olhos, respirando fundo e me olhando profundamente nos olhos: “OK, doutora, e qual é o próximo passo?”.
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É claro que nem só de momentos difíceis era feita sua vida. As boas notícias, quando conseguíamos um bom resultado com o tratamento, eram comemoradas com ainda mais intensidade. Assim como seu aniversário de 50 anos, ou sua viagem com o namorado, planejada com tanto cuidado. Tudo em sua vida era intenso. Ela inteira era assim. Roberta fazia tudo de forma visceralmente compatível com seus valores mais profundos. Fazia tudo certo, mesmo quando estava tudo errado.
Foram quase 3 anos acompanhando e compartilhando suas vitórias e suas derrotas, até que seu momento final chegou, de forma pouco previsível, com uma evolução fulminante da doença no fígado que a levou a entrar em coma e falecer em poucos dias. Eu olhava para ela e me parecia tão errado… Era como se nada daquilo combinasse com a mulher cheia de vida que ela era. Eu pensava em como ela tinha conseguido, diante de tantos momentos catastróficos, seguir adiante.
A resposta veio num telefonema do seu filho, alguns dias depois da morte dela. Ele ligou para agradecer minha assistência, e durante nossa conversa comentei com ele o quanto Roberta me impressionava com sua capacidade de se recuperar e voltar à luta em minutos. Foi então que ele me disse, com sua voz tranquila: “Doutora, minha mãe sempre me ensinou que as coisas nunca estão erradas. Quando achamos que elas estão, é porque temos que rever nosso conceito sobre o que está certo.” Eu sorri. Nenhuma frase poderia resumir de forma mais precisa a pessoa que Roberta era.
As palavras dele ecoam nos meus ouvidos muitas vezes desde então. Nos piores momentos, nas situações difíceis, nos dias em que tudo parece tão incrivelmente errado. Penso em suas palavras quando compartilho os desafios inacreditáveis com os quais os pacientes e suas famílias têm que lidar, e quando meus próprios desafios me parecem injustos ou intransponíveis. As coisas nunca estão erradas. Errado está nosso jeito de olhar para elas, aumentando assim nosso próprio sofrimento.
A questão está no significado que os desafios têm para nós, e não nos desafios em si. Encontrar esse significado é que é o grande desafio, e cada um tem sua fórmula para fazer isso. Para Roberta, a fórmula era bastante fácil de enxergar: tempo para extravazar a tristeza, respiração profunda para recuperar a compostura, e olhar fixo para manter o foco na solução para tudo aquilo. Uma mulher inacreditável.
*Nome fictício para preservar a identidade da paciente.
(Autora: Dra. Ana Lúcia Coradazzi)
(Fonte: nofinaldocorredor)
*Texto publicado com autorização da autora.
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Muito triste e ao mesmo tempo no decorrer da leitura vem um sentimento de compaixão sobre a personagem da história, que parece que meus problemas nem existem mais diante do que ela passou.
Magnífico!!! Muitas vezes nossos problemas são só imaginação de nossas mentes.
Estou muito feliz por ler esse maravilhoso texto.
Obrigado.