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Quando até cientistas precisam crer

Ao discutirmos a complexa relação entre ciência e religião, com frequência nos deparamos com posições polarizadas: ou se afirma “acredito” ou se afirma “não acredito”, com convicção semelhante em ambos os casos.

Com frequência ainda maior, se perguntarmos no que, exatamente, se acredita, ou de onde vem a necessidade individual da fé, nos deparamos com respostas vagas que incluem “tradição”, “comunidade”, “mortalidade”, passando pelos que, de fato, têm sua fé examinada, questionada e reavaliada regularmente.

Nossas convicções mudam com a idade e, entre elas muda, também, nossa relação com a fé.

Nessa polarização milenar, muita animosidade desnecessária vem da convicção infundada de que os que têm opinião diferente da nossa em relação à fé, ou os que acreditam de forma diferente, estão profundamente equivocados, ou são simplesmente tolos ou, pior, são infiéis que não merecem viver.

Deixando de lado a óbvia radicalização dos muçulmanos de organizações terroristas como Estado Islâmico ou Al Qaeda, um exemplo mais ameno, mas não menos sintomático do radicalismo entre ateus e cristãos vem ocorrendo nos debates presidenciais americanos, nos quais os ateus são considerados os candidatos menos elegíveis. É impensável que se eleja um presidente ateu nos EUA.

Na realidade, existe todo um espectro de modalidades da fé humana que ocupa um rico espaço entre o radicalismo dos dois polos. Por exemplo, Francis Collins, diretor do Instituto Nacional da Saúde nos EUA – o órgão governamental que administra o maior número de bolsas de pesquisa nas áreas da medicina e da biologia – não vê conflito algum entre ser cristão e ser cientista.

Como ele, muitos cientistas veem a prática científica como mais um meio de admirar a obra divina, como uma forma de devoção religiosa. Essa é uma tradição antiga, que inclui, por exemplo, alguns dos patriarcas da ciência moderna, como Copérnico, Newton, Kepler e Descartes. A ruptura veio mais tarde, com o Iluminismo do século 18.

LEIS

Para ateus conhecidos do público, como Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens (1949-2011), esse tipo de posição intermediária é inconsistente com os fundamentos da ciência: a natureza é material, e a matéria é organizada segundo leis quantitativas. O objetivo da ciência é descobrir essas leis; não existe espaço para mais nada.

Segundo eles, essa posição metafísica conciliatória cria uma série de problemas filosóficos. Embora atraente, ela força a coexistência incompatível do natural com o sobrenatural. Como a natureza pode ser tanto natural quanto sobrenatural?

Por definição, chamar um evento que ocorre e é percebido por alguém como sendo um “fenômeno sobrenatural” cria uma inconsistência básica: para que o fenômeno tenha sido observado, teve que emitir algum tipo de radiação eletromagnética (luz visível, radiação infravermelha etc.), que foi detectada por algum observador ou aparelho – “Eu vi um fantasma!”.

Em outras palavras, para que um fenômeno seja detectado, tem que trocar energia com quem (ou com o que) o observa. Um fenômeno chamado de sobrenatural, uma vez observado, passa a ser perfeitamente natural, mesmo se misterioso ou aparentemente inexplicável. Um fantasma que é visto não é mais uma entidade sobrenatural.

Alguns adotam a posição que o biólogo americano Stephen Jay Gould (1941-2002) chamou de Noma (do inglês Non-overlapping magisteria, magistérios que não se superpõem) e compartimentam a ciência e a religião em esferas limitadas de influência, afirmando algo como “a religião começa onde a ciência termina”.

Apesar de cômoda, essa posição não vai muito longe.

À medida que a ciência avança, a fronteira entre os dois magistérios vai migrando, refletindo a posição conhecida como “Deus dos Vãos”, a religião tapando os buracos da nossa ignorância científica.

Por outro lado, afirmar categoricamente que o sobrenatural tem uma existência intangível e imensurável posiciona sua natureza além do discurso científico, anulando qualquer possibilidade de troca construtiva de ideias.

O fato é que a ciência e a religião claramente se superpõem na cabeça das pessoas, nas escolhas que fazemos na vida, nos desafios morais que a sociedade moderna enfrenta. É por demais ingênuo negar o poder da religião no mundo, com bilhões de pessoas declarando-se seguidores de algum tipo de fé, mesmo que muitos deles definam sua fé de forma vaga.

Além disso, a posição dos ateus radicais também é inconsistente com os parâmetros do método científico, algo que talvez surpreenda muita gente. Basta ver que o ateísmo é a crença na não crença, já que a possibilidade da existência de qualquer tipo de divindade é negada categoricamente. Ora, a ciência não pode negar a existência de algo categoricamente, apenas após observações absolutamente conclusivas. E como podemos ter certeza do que ainda não medimos?

AGNÓSTICO

A posição mais consistente com o método científico é a do agnóstico, como haviam já percebido Thomas Huxley e Bertrand Russell, entre muitos outros: não vejo qualquer razão para crer, mas, com base no que sei não posso negar absolutamente a possibilidade de que alguma entidade divina exista. Como escreveu Huxley, criador do termo “agnóstico”: “É errôneo afirmar que se tem certeza da verdade objetiva de uma proposição, a menos que seja fornecida evidência que justifique logicamente esta certeza”.

Em vista da diversidade de posições, a questão essencial é a origem dessa necessidade de acreditar que identificamos na maioria absoluta das culturas do passado e do presente. O que a crença oferece que é tão necessário a tantos?

Pertencer a um grupo religioso confere um senso de comunidade imediato. Ao encontrar outros membros de sua comunidade na igreja ou templo, a pessoa vê sua crença justificada, dado que é compartilhada por tantos outros. Mais do que a crença em si, a pessoa se vê integrada num grupo com valores afins.

Isso é tanto verdade para as pessoas de fé quanto para aquelas seculares, sejam elas ateias ou agnósticas. Seres humanos são criaturas tribais, e tribos definem-se a partir de certos símbolos, mitos ou código moral.

Não há dúvida de que nossos ancestrais entenderam que existe uma enorme vantagem em pertencer a um grupo. Fazer parte de uma tribo oferecia uma proteção que aumentava as chances de sobrevivência num ambiente extremamente hostil: unidos venceremos. Tanto no passado quanto no presente, fazer parte duma tribo confere legitimidade social imediata.

Para muita gente, a fé pode ser a justificativa oferecida para participar de um grupo religioso, mas é o senso de comunidade, de valores compartilhados pelo grupo, o que está por trás da devoção.

Existe, no entanto, um outro aspecto da fé, bem mais subjetivo do que tribal. Como descreveu o psicólogo americano William James em sua obra-prima “As Variedades da Experiência Religiosa”, a experiência religiosa atinge seu clímax na subjetividade da experiência individual, na comunhão da pessoa com o desconhecido, na percepção de transcendência dos limites da existência humana, delineada pelas barreiras do espaço e do tempo.

As visões e revelações dos profetas e dos santos, a experiência emocional do divino ocorre no indivíduo, mesmo quando induzida pelo grupo – por exemplo, através de rituais. Existe muito mais no mundo do que o que percebemos ou podemos medir, e essas características “ocultas” são igualmente importantes na nossa construção do que definimos como realidade.

Como escreveu James, “toda a sua vida subconsciente, seus impulsos, suas crenças, suas necessidades são a premissa da sua existência consciente; existe algo dentro de você que sabe de forma absoluta que o resultado disso tudo deve ser mais verdadeiro do que qualquer tipo de argumento lógico, por mais articulado que seja, que tente contradizer essas convicções subconscientes”.

Mesmo que o filósofo George Santayana (1863-1952) e outros tenham criticado James por “encorajar a superstição”, ninguém pode negar que a razão tem alcance limitado. A ciência, se vista como expressão da razão humana, espalha-se por todos os cantos do conhecimento de forma magnífica, mas seu alcance não é ilimitado.

Existe outra dimensão da fé, separada dos rituais tribais, da religião organizada, que dá expressão a uma necessidade primária que temos de comunhão com o desconhecido. Esse é o aspecto mais universal da necessidade humana de crer, que transcende as divisões arbitrárias da fé criadas no decorrer da história; as religiões, as tradições, os cultos, as tribos e suas regras. Não existe aqui qualquer menção a uma supersticiosidade irracional ou mística. O que identificamos é a necessidade individual da crença, expressa por cada um de forma variada.

Quando Einstein menciona sua “emoção religiosa cósmica” para descrever sua conexão espiritual com a natureza, está tentando expressar precisamente essa atração humana pelo mistério, pelo desconhecido. “Espiritual” não implica a crença numa dimensão não material.

O que pode surpreender a muitos – especialmente aos que veem cientistas através do estereótipo do racionalista frio – é que essa atração pelo mistério, em essência uma atração espiritual pela natureza, inspire o cientista em seu trabalho. Não é Deus que se busca no questionamento científico, mas a transcendência do humano, a busca por uma dimensão além do cotidiano que dá sentido à nossa busca por sentido.

Mesmo o cientista secular quando estende sua curiosidade ao oceano do desconhecido está praticando essa crença, expressando a necessidade que temos de conhecer nossa história e de explorar o novo, estendendo nossa visão da realidade.

Autor: Marcelo Gleiser

Fonte: www.fronteiras.com

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