RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “Você verá sua mãe em breve. Ela vai apenas tomar um banho”, lhe disse aquele homem de dentes separados quando sorria, a voz “quase gentil”.
Àquela altura Edith Eva Eger ainda não sabia, mas tinha diante dela Josef Mengele, oficial nazista que entraria para a história sob a alcunha de Anjo da Morte.
Também não desconfiava que ele mentira quando pediu que ela e a irmã, Magda, fossem para uma fila de mulheres com mais de 14 anos e menos de 40, e a mãe, para outra -mas que não se preocupassem, logo estariam juntas de novo.
Coube a uma jovem de vestido listrado esclarecer o que realmente se passava ali, apontando para a fumaça subindo de uma chaminé. “Sua mãe está queimando lá dentro. É melhor você começar a falar dela no passado.”
A mesma garota lhe arrancaria das orelhas os brincos de coral e ouro que usava desde que nasceu.
Perguntou por que ela havia feito isso, e ouviu de volta: “Eu estava apodrecendo aqui enquanto você estava livre, indo à escola e ao cinema”.
Assim Edith, a adolescente de 16 anos que só queria saber de dançar balé até o Exército alemão invadir seu vilarejo húngaro, foi apresentada a Auschwitz, em 1944.
Já descrita como a “Anne Frank que não morreu”, Edith, 92, pode não ser a primeira sobrevivente do Holocausto a compartilhar sua história de superação, como o fez em “A Bailarina de Auchswitz”, que será lançado no Brasil no fim de março.
Um dos relatos mais famosos, inclusive, a inspirou enquanto estudante de psicologia: “Em Busca de Sentido”, do psiquiatra Viktor Frankl, que leu quase um quarto de século depois do fim da Segunda Guerra Mundial e que viraria seu mentor.
Lendo Frankl ela teve uma epifania que mudaria sua vida: “Não importa quão frustrante, chata, limitadora, dolorosa ou opressiva for nossa experiência, podemos sempre escolher como reagir”.
O que faz do livro de Edith único é a perspectiva que ela oferece não só como alguém que precisou superar os horrores do passado. Doutora em psicologia, a nonagenária ainda atende pacientes e aplica o que aprendeu no campo de concentração em suas terapias.
Edith atualmente mora na Califórnia e à reportagem, por telefone, se diz surpresa de perceber como existe um excesso de medicação nos Estados Unidos. Afinal, uma lição que ficou de Auschwitz, para ela: é preciso “achar sua força interna” e “abraçar o possível, porque tudo pode virar uma oportunidade na vida”.
Parece papo de autoajuda, ok. Mas “não tem verão sem inverno”, e é importante entender isso se você quer superar um trauma, afirma.
E ela teve vários ao longo do ano em que ficou sob a guarda do nazismo, quando testemunhou cenas como a da mulher que entrou em trabalho de parto e teve as pernas amarradas por guardas (“nunca vi uma agonia como a dela”).
Pesava 32 quilos quando foi resgatada por soldados americanos que “tinham pouca comida a oferecer”, só gotinhas coloridas de chocolate que depois aprenderia serem M&Ms.
Graças a Deus, afirma. Uma amiga dela morreu por comer demais após ser libertada. “Manter o estado de inanição é tão mortal quanto sair dele”, explica.
Hoje ela se descreve como uma senhora ativa e ainda capaz de dar seus pulinhos de balé, estilo que a garotada chama de “música de supermercado”, reconhece, rindo.
Bailarina desde criança, ela já recebeu de Mengele a ordem para dar piruetas ao som da valsa “Danúbio Azul” para seu deleite. Acha que agradou: “Ele deve ter ficado impressionado com o meu desempenho, porque jogou um pedaço de pão para mim”.
Fechou os olhos e se sentiu rodopiando no inferno. Viu-se, então, “como Salomé, obrigada a dançar para o padrasto, Herodes”, e se questionou se “a dança lhe dá poder ou tira seu poder”.
Edith se decidiu pelo primeiro caso. A bailarina de Auschwitz ainda dança, “apesar de eu ter um mau caso de escoliose”.
E esse, ela conta à reportagem, é seu segredo: “O contrário da depressão é a expressão. A gente precisa se expressar, não suprimir os sentimentos”.
Nem os piores deles, como o ódio. Isso percebeu ao atender um garoto de 14 anos enviado por um juiz. Ele havia ajudado a roubar um carro e, com o cotovelo na mesa, disse de cara: “Está na hora de a América ser branca novamente. Vou matar todos os judeus, negros, mexicanos e todos os chineses”.
Imagina! Logo ela, que sobrevivera a um genocídio, que usou o banheiro “para negras” em solidariedade a colegas afroamericanas e marchou com Martin Luther King para acabar com a segregação racial nos EUA.
Edith conta como descobriu que o ódio que sentia pelo rapaz também precisa ser vencido. Para isso, lembrou de duas pessoas: Adolf Hitler e Corrie ten Boom, a “gentia honrada”, uma holandesa que escondeu centenas de judeus em casa e acabou também em um campo de concentração.
Passada a guerra, Corrie se encontrou com um dos guardas responsáveis pela morte de sua irmã no campo. Poderia ter cuspido nele, mas não.
Corrie conta que naquele momento, em que a ex-prisioneira apertou as mãos do ex-guarda, ela sentiu um amor puro e profundo. Imaginei se era possível que aquele rapaz racista tivesse entrado em minha vida para que eu pudesse aprender o que é o amor incondicional”, diz Edith.
Então, engoliu a seco e, ante a verborragia nazista do jovem paciente, disse apenas: “Conte mais”.
Assim aprendeu que ambos perderam os pais (ele por abandono, ela por morte) e se viam como uma mercadoria danificada.
“Ao abrir mão de julgar, ao deixar de lado minha vontade de que ele fosse ou acreditasse em algo diferente, ao perceber sua vulnerabilidade e sua ansiedade por pertencimento e amor, ao conseguir superar o meu medo e minha raiva de modo a aceitá-lo e amá-lo, fui capaz de dar a ele algo que suas botas marrons e sua camisa marrom [vestes de skinhead] não conseguiram “uma imagem real de seu próprio valor”, afirma.
Todos ali, compreendeu, têm a capacidade de odiar ou amar. De ser Hitler ou Corrie. Questiona a repórter: na vida, quem você escolhe ser?
Fonte: gauchazh.clicrbs.com.br
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