A privacidade acabou ou estamos sendo induzidos a pensar assim porque muita gente vai lucrar com isso?
Alguns amigos que estão voltados para a divulgação de seus textos na internet reclamam que eu publico poucas coisas sobre minha vida íntima nas redes sociais. E, segundo eles, isso seria uma falha, pois os leitores querem saber coisas sobre a vida privada de quem produz conteúdo na internet. Quem eu namoro, o que como, para onde viajo, essas coisas supostamente deveriam ser divulgadas no Facebook e no Instagram para atrair mais leitores.
Isso me fez lembrar o que Vint Cerf, diretor de internet da Google, disse em 2014. Ele afirmou que a privacidade é uma anomalia, e que não haveria motivo para tanto alarde quando nossos assuntos pessoais são de conhecimento público. Cerf sugeriu que a privacidade é um conceito muito novo na sociedade, pois nas pequenas comunidades do passado, em uma tribo ou uma pequena cidade, todo mundo sabia da vida de todo mundo e ninguém morria por isso.
Bom, acho que ele se esqueceu da Idade Média, quando queimavam mulheres por terem hábitos supostamente “estranhos”. Mas, para analisarmos a afirmação dele em si (se a privacidade é ou não uma anomalia) vamos dar um desconto a esse detalhe. Até porque há ainda dois outros descontos para fazermos.
O primeiro é que em nosso imaginário sempre pintamos os executivos do Google como pessoas descoladas, em geral jovens, usando camiseta e jeans. Aí vemos um senhor careta, usando até uma bandeira ou algo parecido na lapela, com cara de raposa matreira. Mas isso pode ser um tremendo preconceito da nossa parte, então vamos descontar que a tese vem de alguém que não preenche o estereótipo do executivo nerd descoladão.
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O segundo desconto é que quem fala é justamente o representante de uma empresa que tem todo o interesse em acabar com a privacidade de todo mundo, porque um de seus principais negócios é lucrar em cima disso (novamente, e em atenção aos leitores mais raivosinhos: não tenho nada contra lucro e contra a economia de mercado, mas isso não implica que seremos acríticos e acriteriosos em relação às empresas). É como se o lobo fosse no meio do rebanho defender que fugir do predador é uma anomalia.
Mas precisamos analisar a ideia em si mesma, então vamos descontar o fato de que ela não é apresentada por alguém imparcial, mas por um oportunista.
Se privacidade é uma anomalia por ser algo novo e porque antigamente ninguém a possuía sem que isso representasse o fim do mundo, então também podemos dizer o mesmo sobre várias outras coisas. Por exemplo, usar a internet e pesquisar no Google também seria uma “anomalia”. Antigamente, quando alguém precisava saber sobre um determinado assunto, podia ir à biblioteca pública de sua cidade e consultar um punhado de livros e nem por isso era o fim do mundo. Usar um email como o Gmail também seria uma “anomalia”, pois por séculos as pessoas comunicavam-se por meio de cartas e nem por isso o mundo acabou.
Então vemos que a proposta não resiste a um só minuto de reflexão. Na verdade, a privacidade parece ser uma daquelas inovações do homem moderno que serve para o indivíduo garantir seu próprio bem-estar e procurar atingir o seu conceito pessoal de felicidade, sem que essa busca conte com a interferência excessiva dos outros.
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Vou ilustrar com um exemplo.
Antigamente, nas comunidades nostalgicamente lembradas por Vint Cerf, ninguém podia fazer algo que fugisse do conceito de “normalidade” sem que todo mundo soubesse e acabasse julgando as escolhas pessoais de seu vizinho. Afinal, o ser humano, quando se comunica, não se limita apenas a transmitir uma informação como um computador: o ser humano, ao comunicar, sempre acaba fazendo uma valoração do que está transmitindo.
A privacidade, portanto, é uma ferramenta moderna, de grande utilidade, que permite ao indivíduo ter certa autonomia para cuidar de sua própria vida e arriscar desvios e caminhos pouco convencionais na busca daquilo que considera mais importante em sua hierarquia de valores.
Mas tem mais. A privacidade é um dos poucos instrumentos que o indivíduo possui quando precisa se defender da ingerência do Estado e das autoridades. Graças à privacidade, o indivíduo pode proteger suas convicções íntimas em épocas de perseguição política. Graças à privacidade, indivíduos podem se reunir quando bem quiserem para manifestar suas opiniões e coordenar seus esforços sem que tenham que dar satisfações a qualquer governo.
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Tenho um amigo que afirma que a democracia é algo frágil e cíclico – isso significa que em algum momento no futuro os sistemas democráticos passarão por uma cíclica derrocada, e serão substituídos, aqui e ali no mundo, por governos autoritários em maior ou menor medida. Essa possibilidade, ao menos em relação aos países da América Latina, parece algo tangível.
Nesse caso, seria de nos perguntarmos que facilidade estamos dando a esses futuros governos ditatoriais ao expormos de forma tão sem limites a nossa privacidade nas redes sociais. Em algumas horas, um algoritmo bem elaborado poderia fazer um dossiê de todos os cidadãos de uma nação criando um perfil sócio-político que inclusive poderia estabelecer estimativas sobre prováveis focos de resistência politica.
Há, além disso, outro aspecto importante da privacidade além do social e político. Um indivíduo não é algo que nasce pronto. O indivíduo, a concepção de individualidade também é, para usar o conceito de Vint Cerf, uma “anomalia”. A individualidade é uma conquista moderna e o resultado de certos condicionantes que extraem o ser humano do “espírito de rebanho” ou “espírito de rebanho” e convertem-no num ser único, ou num ser que aspira ao menos a ser único, alguém capaz de autodeterminação e de elaborar a sua personalidade.
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Isso, porém, só ocorre se houver um espaço e um tempo dedicados à reflexividade e à contemplação intimista. E o espaço e o tempo destinados a essas atividades é o que chamamos de privacidade. É na intimidade de nossa vida fora dos olhares públicos que carregamos nossas baterias e construímos o nosso espírito peculiar.
Esse espaço, porém, está diminuindo com a internet, e isso representa uma grande perda. É que, sem privacidade, não temos como assimilar o que nos ocorre, e nem conseguimos evoluir de forma consciente.
A privacidade, além de ser uma arma ou escudo que nos protege da ingerência das autoridades e do Estado, é também uma ferramenta para o desenvolvimento íntimo de si mesmo.
Estamos, porém, renunciando à privacidade gratuitamente e deliberadamente na internet. É como renunciar a um só tempo de uma arma contra os poderosos e de uma parte fundamental de nosso ser.
Como a privacidade, para nós, não possui valor de mercado, não percebemos que aquilo que estamos fazendo nas redes sociais é dar a grandes empresas gratuitamente (ou a um baixo preço, o preço de poder participar de uma rede social) algo que possui sim muito valor econômico.
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Empresas como Facebook e Google ganham bilhões de dólares negociando nossas preferências íntimas para empresas que, com essas informações, podem planejar formas mais insidiosas e ardilosas de nos manipular a consumir suas mercadorias.
Em que medida a privacidade está indo para o ralo e não estamos ainda amadurecidos o suficiente para, enquanto sociedade, sermos capazes de lidar com essa era da superexposição?
(Autor: Victor Lisboa)
(Fonte: ano-zero.com)
* Texto publicado com autorização da administração do site
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