Algo muito interessante acontece em nossa sociedade atual, que é o desprezo de algumas mulheres pelas princesas de contos de fadas. Atualmente o termo “princesa” se tornou pejorativo, sugerindo uma mulher que é mimada, cheia de vontades, passiva e que fica a espera de um príncipe encantado, ou seja, alguém sem atitude.
Algumas mães ainda se orgulham quando suas filhas não gostam das princesas. Elas batem no peito dizendo que as meninas são guerreiras e “quase” um menino.
Não existe nenhum problema em uma garota não se interessar por bonecas, princesas e preferir “brincadeiras de meninos”. Isso faz parte da personalidade da menina, de sua estrutura básica e essencial. Mas e quanto àquelas que gostam e se identificam com as princesas de contos de fadas? Não poderão expressar sua personalidade sem serem ridicularizadas?
O desprezo pelo conceito da princesa é algo sintomático, provindo da rejeição do homem ocidental pelos contos de fadas, que é tido como “coisa de criança”, além da aversão por aquilo que é feminino.
Atualmente existe, inclusive, um movimento contra os contos de fadas, que são tidos como vilões do imaginário infantil.
Pois bem, antes de adentramos profundamente no tema, é importante colocar a importância que os contos de fadas têm para a psicologia e falar um pouco de sua história. Originalmente, os contos não eram destinados apenas às crianças, mas em sua maioria eram para os adultos.
De acordo com a psicoterapeuta analítica alemã Marie-Louise Von Franz (2005), “os contos de fadas são a expressão mais pura e simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva”, disse.
PRINCESAS SÃO HEROÍNAS E PODEM SER SIMBOLIZADAS DE DIFERENTES FORMAS
Os contos estão recheados de arquétipos, que são imagens inatas da humanidade e configuram um padrão de comportamento geral e comum a todos os humanos. Um arquétipo muito comum e que mostra que possuímos uma ideia geral e coletiva é o do herói. Quando falamos ou ouvimos a palavra “herói“, já de imediato formamos uma ideia sobre o que é um e como ele deve se portar. Naturalmente pensamos que é alguém ativo, que luta contra os inimigos e não tem medo, dentre outras características.
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Por essa razão, os contos não devem ser levados ao pé da letra, pois possuem linguagem simbólica e tratam de conteúdos psíquicos. O herói é aquele na qual toda a história se centra. Von Franz diz: “Frequentemente, ele é um salvador: salva seu país e seu povo de dragões, bruxas e de outros males. Em muitas histórias, é ele quem encontra o tesouro escondido, liberta sua tribo e livra-a de toda a sorte de perigos. Ele restabelece as ligações de seu povo com os deuses e com a vida. Ele renova o princípio da vida. É ele, também, quem navega pelos mares à noite e que, saindo fora da barriga da baleia, leva consigo todos aqueles que foram engolidos antes dele”.
No entanto, existem diversos tipos de heróis, tanto na mitologia, quanto nos contos de fadas: o tipo tolo, o trapaceiro, o inocente, o homem forte e viril, o jovem belo, o feiticeiro, etc. E há também as heroínas, que podem ser princesas, guerreiras, feiticeiras, camponesa, etc.
ISOLAR CRIANÇA DOS CONTOS DE FADAS NÃO A IMPEDE DE FANTASIAR PESSOAS E SITUAÇÕES
A figura do herói (ou heroína) possui uma importância muito grande para o desenvolvimento psíquico do ser humano. Mais ou menos nos primeiros 20 anos de vida, a principal tendência do inconsciente é construir um complexo de ego forte. E a maioria das dificuldades na juventude resultam de perturbações ocorridas nesse processo, seja por influências familiares negativas, seja pela experiência traumática ou qualquer outro distúrbio.
Um dos fatores que auxilia a formação do ego é o ideal do herói, que desempenha o papel de modelo para as crianças.
No caso dos meninos, geralmente o pai preenche esse papel, da mesma forma que pilotos, policiais, irmãos mais velhos, ou os meninos maiores da sala de aula; são eles que recebem a transferência da criança. E as meninas transferem o ideal de heroína a figuras como a mãe, uma irmã, uma tia, uma princesa, uma guerreira, uma fada, uma rainha, uma feiticeira, etc.
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Nos seus sonhos secretos, a criança imagina que é aquilo que ela quer ser quando crescer. As fantasias de muitos garotinhos são aquelas de vestir uma capa vermelha, ou de ser o chefe, o rei, etc. Esses modelos são projeções produzidas pelo inconsciente, eles aparecem naturalmente nos sonhos dos adolescentes ou são projetados em figuras externas que captam a fantasia da criança e influenciam a construção do seu ego. Toda mãe sabe, ou deveria saber disso.
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Por essa razão, não há nada de errado no fato da criança fantasiar. A fantasia é uma expressão espontânea da psique humana. Se hipoteticamente isolarmos uma criança de qualquer material mitológico, sejam mitos, contos ou filmes de super heróis, mesmo assim ela irá produzir espontaneamente este material. Trata-se de uma característica inata humana. Por essa razão, contos de fadas não têm nada de prejudicial. E tentar isolar a criança desse mundo é inútil, pois de alguma forma sua psique produzirá esse material.
HISTÓRIAS DE HERÓIS AJUDAM PESSOAS EM MOMENTOS DE CONFLITO E CONFUSÃO
Contos de fadas são estruturas simbólicas, que não ditam regras de comportamento, mas mostram ritos de iniciação, ou seja, modelos esquemáticos para o desenvolvimento da consciência humana.
Quando nos tornamos adultos, reprimimos – por meio do contato com a realidade – a capacidade de fantasiar e o contato com o inconsciente. Contudo, o ego funciona de maneira apropriada somente quando ele consegue certa adaptação ao sistema psíquico. Isso significa que ele funciona melhor se certa plasticidade é conservada, ou seja, quando não está petrificado. Assim, ele pode, através dos sonhos, de humores, etc, ser influenciado pelo Self, adaptando-se, assim, a todo o sistema psíquico.
Em termos psicológicos, o herói representa o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego ideal que restabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, na qual uma nação desviou-se do padrão básico e instintivo da totalidade. Pode-se dizer então, que o herói é uma figura arquetípica que representa um modelo de ego funcionando de acordo com o Self. Ele é um modelo a ser observado, pois mostra um ego funcionando corretamente.
Por essa razão, nos identificamos de forma emocional com os heróis e assim observamos que não somente as crianças, mas os adultos também se beneficiam com os contos de fadas e seus heróis e heroínas. Pois em momentos de confusão e conflito, essas histórias podem auxiliar no sentido de encontrar o caminho.
MODELOS DE HERÓI MATAM O FEMININO QUE DEVE EXISTIR EM CADA UM
É importante ressaltar também que a Psicologia Analítica apresentou, para o homem ocidental, um modelo de desenvolvimento do ego pautado pelo herói solar, que batalha contra a mãe opressora sob a forma de dragão ou serpente. Assim, reprimiu e deixou de lado todas as outras formas de desenvolvimento do ego, excluindo possibilidades que podem ser mais adequadas para cada tipo de pessoa.
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Como aponta o psicólogo James Hillman, o heroísmo cego e exaustivo sob a qual nossa sociedade ocidental vive, mata o feminino. Isso mutila a psique individual e coletiva. Com o advento do patriarcado, o herói solar ganhou força. Hercules, Édipo, Perseu, entre outros, são os modelos de heroísmo e, com isso, a perseguição desenfreada às mulheres (representantes do feminino) se iniciou.
DRAGÕES DOS CONTOS SIMBOLIZAM PAI E MÃE – E A MORTE DA DEPENDÊNCIA INFANTIL
Os ciclos do mito do herói, que se realiza através da luta armada, consiste em:
Carl Jung compreendeu que o dragão simboliza pai e mãe, figuras arquetípicas que representam uma regressão e que impossibilitariam o desenvolvimento e o amadurecimento da psique da criança. O herói precisa simbolicamente matar a mãe primeiro e em seguida o pai. Matando, assim, sua dependência infantil.
NAS HISTÓRIAS ORIGINAIS PRINCESA NÃO BEIJA O SAPO OU ESPERA PELO PRÍNCIPE
Pois bem, agora voltando à questão do feminino e da problemática atual da mulher moderna que abomina a “princesa”. É correto afirmar que, com o advento do patriarcado, os contos de fadas se tornaram diversão para crianças. E com a Disney, os contos foram “açucarados” e alguns aspectos do feminino que não satisfaziam o patriarcado foram suprimidos.
Exemplo disso é o conto de fadas “O Rei Sapo”, conhecido como “A Princesa e o sapo”, no qual foi alterado para o infame beijo da princesa no sapo. No entanto, em sua origem, a princesa arremessa o sapo na parede com nojo e, assim, ele se torna um príncipe. A história atual mostra um descontentamento em relação à mulher, que se sentiu obrigada a “beijar o sapo” e uma reação emocional de igual proporção à repressão de sua natureza feminina.
Além disso, a questão do casamento da princesa incomoda a mulher. E hoje o termo “princesa” se tornou sinônimo de esperar pelo príncipe encantado. No entanto, nos contos originais, a princesa não estava dormindo para esperar o príncipe. Na história original de “A Bela Adormecida”, o príncipe não faz absolutamente nada de heroico; ele apenas chega no momento exato em que acabou a maldição.
No entanto, vemos que a heroína dos contos de fadas sempre estabelece um laço afetivo, em sua maioria pelo casamento, mas que podem ser laços fraternos também. Essa necessidade de criar laços com outros é da mais alta importância para o feminino. Sua natureza é voltada para integração – e não separação.
PRINCESAS SABEM FAZER BOM USO DO TEMPO
Outro ponto digno de nota é que existe o costume, principalmente no meio “junguiano” em se separar masculino em ativo e feminino em passivo. Separamos de maneira clara esses dois termos. Pois bem, essa categorização é um princípio masculino, que não se encaixa na forma feminina de consciência.
Esse estado de consciência não pertence apenas e exclusivamente às mulheres, mas também pode ocorrer aos homens – apesar de ser representado por uma figura feminina. Sua característica principal é que a consciência não existe separada do inconsciente, mas em ressonância com ele. Por isso, ela muda caprichosamente em resposta às mensagens do inconsciente.
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Além disso, a consciência está ligada profundamente ao tempo e destino. Nos contos de fadas é comum observarmos as princesas aceitando seu destino e aguardando o “tempo certo”. Isso, em uma sociedade na qual a eficiência é algo que conta muito, o aceitar e aguardar ressoam como passividade. Mas aceitar o destino e não amaldiçoá-lo pode ser muito positivo.
Os pais de Édipo e ele próprio fugiram do destino e foram alcançados por ele. Se a pessoa consegue aceitar e esperar, seu destino pode mudar e ela tem a chance de fazer algo diferente para atrair boa sorte.
O herói patriarcal luta contra o destino e teme ser engolido por ele. A princesa espera sem luta e aguarda o momento mais favorável. É como o processo de gravidez, no qual há um comprometimento de corpo e mente com seu estado atual, que fica tecendo e gerando vida nova.
A consciência feminina não está ligada a verdades absolutas. Por estar tão ligada ao inconsciente, aceita e se relaciona melhor com os instintos. Já a masculina patriarcal – apoiada pelo Deus único – insiste na universalidade absoluta e separa os objetos, corta e distingue.
Nos contos de fadas os instintos são representados pelos animais que auxiliam o herói e a heroína. A espada masculina da racionalidade, que mata o dragão ou a serpente, que simbolizam imaginação (dragão) e instinto, intuição (serpente). Perder o contato com a imaginação e o instinto está sendo a nossa derrota, pois perdemos também sabedoria, o contato com a morte e com os ciclos naturais do corpo e alma.
É claro que existem modelos de heróis masculinos que não matam o dragão e se relacionam harmoniosamente com os instintos, mas esses foram suprimidos da cultura e da própria psicologia. Como a consciência feminina é mais relativista, ela não aceita a divisão absoluta como citei anteriormente e engloba em si o masculino, interagindo com esse tipo de consciência e, às vezes, está contra ela.
O lado instintivo do feminino não é hostil ao masculino. Quando o feminino é liberado, tanto na psique masculina quanto na feminina, se une em paz e amor com o masculino. Por essa razão, o tema simbólico do casamento é tão comum nos contos de fadas femininos.
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O herói solar – e consequentemente a consciência coletiva ocidental – busca a perfeição, excluindo defeitos, cortando o mal com sua espada afiada. Sendo o mal representado como aquilo que atrapalha sua ideia de perfeição como os instintos.
A consciência feminina nos contos de fadas aceita mais do que exclui. Ela busca a completude. Ela não mata o mal e nem o corta, mas busca o momento certo para agir. Sendo tão mutável e plástica, não pode ser definida como passiva, pois esse termo já denota divisão. Nos contos de fadas, as heroínas costumam ser passivas e ativas. Não há uma divisão tão clara.
PRINCESAS ATUAIS, DE FROZEN, MULAN E VALENTE, SÃO MAIS ATIVAS
Atualmente temos uma série de adaptações como Frozen, Mulan e Valente, por exemplo, em que a heroína é mais ativa e mostra a mulher em papéis mais atuais. Contudo, essas “adaptações” não trazem nenhuma novidade, apenas uma roupagem diferente. Vemos Deusas, princesas e heroínas de outros contos de fadas ali presentes.
Frozen é uma adaptação do conto “Rainha da Neve”, no qual a heroína Gerda salva seu amigo da maldição da Rainha. E ela é bem ativa durante o conto. Valente não é nada mais que a Deusa Virgem Artemis em uma roupagem diferente. Já Mulan mostra simbolicamente Atena, deusa estrategista.
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Não que elas sejam ruins, na verdade é ótimo e extremamente positivo ter modelos mais flexíveis para a mulher. Portanto, o modelo feminino não é tão absoluto e fixo quanto imaginamos. Aprender a esperar e aceitar é extremamente necessário atualmente.
Precisamos compreender que o desenvolvimento do ego ocidental não é o único e nem o melhor – na verdade, esse é um ego moribundo. Existem outras possibilidades que precisam ser conhecidas, aceitas e assimiladas. Outros tipos de consciência como o Puer (jovem), Senex (velho) e o feminino seriam o melhor caminho para encontrarmos a totalidade. Como afirma Hillman: “esse é o mito sustentador que devemos contar para explicar nossos estranhos modos de ser: por que estamos sempre em guerra, por que temos devorado o mundo, por que temos tão pouco poder imaginativo, por que temos um só Deus e ele está tão longe”, reflete.
Enquanto nos identificarmos apenas com esse modelo moribundo e obsoleto continuaremos vivendo na agressividade, misoginia, egoísmo e distância de sentimentos. Nunca antes as mulheres precisaram tanto olhar para esses modelos femininos em busca do retorno da sua essência. Sim, “ser princesa” não é algo negativo. Ter flexibilidade, saber a hora de cortar e ser guerreira, de ser suave, de “gestar” algo, de aceitar o destino e de se abrir é necessário para sairmos da neurose coletiva instalada.
Referências bibliográficas:
HILLMAN, J. O Livro do Puer – ensaios sobre o arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulu, 1998.
KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.
NEWMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.
VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.
O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.
O gato – Um conto da redenção feminina 3 ed. Paulus. São Paulo: 2011.
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