A filosofia tem que produzir pelo menos vergonha em nós! Seguiremos nesse tom, porque de tolices estamos repletos, a imbecilidade é dominante, mas quem disse que não podemos incomodá-la? E queremos incomodar! A filosofia incomoda. A ideia de que a filosofia é um conhecimento abstrato que fica conceituando categorias como alma, razão, espírito, essência, ontologia, moral, etc., na figura de um professor que apresenta o pensamento de “grandes gênios da humanidade” (Platão, Aristóteles, Sócrates, etc) é muito superficial, limita-se à figura do historiador de filosofia clássico e, apesar de muita coisa ter mudado, essa ainda é uma caricatura filosófica para o público que a desconhece. A filosofia vai além. Pode nos equipar para mapear a complexidade dos discursos presentes em qualquer área, podemos melhor compreender os jogos de saber e poder que estão em jogo, bem como os troféus que estão em disputa nos diversos campos sociais. Ainda, podemos nos libertar de muitas tolices que constrangem as nossas vidas. Sem nos pedir licença, a filosofia pode alterar percepções, desestruturar nossos mundos, possibilitar a criação e a destruição de tantos outros modos possíveis de existir. E interessa aqui, sobretudo, aquela filosofia que é justamente para nos incomodar, produzir modificações, provocar rachaduras e destruir verdades, produzir vergonha em nós! E é para isso mesmo, afinal, que serventia teria uma filosofia que não nos envergonhasse?
Quando alguém pergunta para que serve a filosofia é quase certo que pretende-se irônico ou com intenção de rebaixamento desta face a um mundo que submete o valor das coisas à utilidade técnica e monetária. Filosofia já começa se servindo aí, mostrando que nosso interlocutor e o seu discurso já vem marcado por um certo modo de ver as coisas. Mas a questão vai muito além.
A ideia de que a filosofia é um conhecimento abstrato que fica conceituando categorias como alma, razão, espírito, ética, moral, etc., na figura de um professor que apresenta o pensamento de “grandes gênios da humanidade” (Platão, Aristóteles, Sócrates, etc) é extremamente rasa, limitando-se à figura do historiador de filosofia e, apesar de muita coisa ter mudado, essa ainda é a caricatura filosófica para o público que a desconhece.
É fundamental conhecer os filósofos, os conceitos, a atmosfera do pensamento em cada época… mas filosofia vai muito além disso. Ninguém precisa ser especialista para se iniciar na filosofia, mas é claro que a compreensão vai ser diferente quando conhecemos um pouco da história filosófica. Deleuze diz que, com as devidas proporções, se a unidade constituinte do cinema é a sequência, na filosofia o conceito é a unidade constituinte, pois os grandes filósofos, em sua maioria, criam conceitos que são inseparáveis de outros conceitos, daí que, mais do que conhecer o que um conceito representa, tomar o seu lugar num conjunto de outros conceitos nos amplia a compreensão. Por exemplo, Nietzsche está o tempo todo em contraponto a um tipo de pensamento dominante na filosofia, conhecer filósofos como Kant, Hegel, Platão, Sócrates, e outros, enfim, a sequência que eles ocupam no pensamento ocidental, ampliaria as relações que poderíamos fazer com o pensamento nietzschiano.
Não existe nenhuma técnica, nenhuma tecnologia, nada que o homem já produziu até hoje, que não tenha, ainda que não percebamos, raízes em pensamentos filosóficos. Da filosofia a uma ciência moderna, pensadores como Lucrécio, Epicuro e Demócrito e tantos outros fazem-se presentes na física atômica e quântica. Podemos aprender teorias, práticas e técnicas sem nem tocar na filosofia, mas é radicalmente diferente a experiência do conhecimento quando temos bases filosóficas, pois a filosofia é uma espécie de “Mãe” de todos os saberes.
Em um mundo onde executar tarefas e seguir protocolos são considerados mais importantes que problematizar e pensar, os cursos de formação passam longe das bases filosóficas. No cenário atual vemos proliferar uma educação acadêmica apostilada e tarefeira, formando pessoas cada vez mais ágeis em julgar e cada vez mais obsoletas em pensar. Uma formação sem bases filosóficas é uma formação para a tolice, é disciplinar-se em prol de um sistema reacionário.
A descoberta científica só é possível porque está ancorada por pensamentos filosóficos. Para os filósofos o inconsciente freudiano não é assim tão inovador como nos apresenta o psicanalista, muito do que Freud apresentou encontra subsídio em filósofos, sobretudo Schopenhauer.
Acredito que o mais fundamental da filosofia é que ela não serve ao poder, não serve à igreja, ao estado, à ciência… ainda que estes possam se utilizar dela – e utilizam. E isso nos abre um leque imenso para uma nova experimentação de vida, visto que os saberes estão intrinsecamente ligados aos poderes e carregam interesses que podem servir de dominação e manutenção de modos de vida.
Nós estamos o tempo todo sendo constrangidos, de muitas maneiras, consciente e inconscientemente, a aceitar critérios dominantes que normatizam um certo modo de pensar, viver e se comportar, como se esses modos fossem naturalmente legítimos e não houvessem outras possibilidades. Uma filosofia que não está a serviço do estado pode nos ajudar a dissolver toda essa concretude do constrangimento que nos captura diariamente. Pare um pouco e reflita para pensar na importância que a filosofia pode ter para nossas vidas!
Quanto mais o conhecimento científico funciona dentro das suas próprias categorias, quanto mais se acha conhecedor dos fenômenos mais ele gira em torno de si mesmo, não conseguindo problematizar além do próprio eixo, resta-lhe uma capacidade muito limitada para enxergar outras possibilidades de existir, consequentemente a tolerância com a diferença também é limitada. Se temos associações com a filosofia podemos puxar várias linhas de pensamento e corremos menos perigo de cair no “buraco-negro” do especialismo, nosso repertório de problematizar e identificar o que está em jogo é ampliada.
Apesar desse texto tomar a filosofia aqui de um modo mais geral, sem se preocupar em problematizar que filosofia é essa, é importante mencionar que a filosofia e o filósofo também podem estar a serviço do estado e da tolice. Olavo de Carvalho e Luiz Felipe Pondé são dois representantes desse tipo de filosofia no Brasil. Nesse sentido, é necessário uma filosofia enquanto máquina de guerra. Máquina de guerra é um conceito muito marcante no pensamento de Deleuze e Guattari que precisaria ser desdobrado, no entanto, tomado aqui de maneira simplificada, quer remeter a um pensamento que não esteja a serviço do estado e seus modos de captura da vida, o objetivo não é fazer guerra, máquina de guerra porque quer fazer fugir dos aprisionamentos do estado os fluxos do desejo que é objeto permanente de captura.
A aventura filosófica enquanto máquina de guerra, simplificadamente, uma filosofia que não está a serviço do estado nem de outras instituições de conhecimento, nos equiparia com armas para resistir à dominação e liberar os fluxos do desejo possibilitando a criação. Com a filosofia podemos mapear a complexidade dos discursos e valores que estão presentes em qualquer área. Posso não ter formação em Direito, mas a filosofia me equiparia para identificar que esse ramo do conhecimento é atravessado por uma lógica platônica, cartesiana e kantiana, o que me dá um norte de como funciona as regras desse “jogo” e como se comportam os seus “jogadores”, indo mais além, podemos extrair características de como seria uma concepção de homem e mundo para o pensamento dominante do Direito. Certamente que esse homem, entre tantas características, é dotado de um juízo e uma razão capaz de deliberar sobre sua própria vida.
Podemos fazer o mesmo com um certo modo de terapêutica fundada na neurose enquanto modo mais saudável de existir, e percebemos que a psicanálise reforça ainda mais o nosso modo neurótico de existir, e se irmos mais longe percebemos que ela funciona enquanto um dispositivo a serviço do próprio estado.
A filosofia nos permite mapear valores, princípios, modos de pensar e ver o mundo que estão em jogo, quem são os interlocutores, de que lugar eles falam, quais os interesses por trás dos discursos, etc. É imenso o repertório que a filosofia nos oferece para se situar diante da complexidade do mundo e da vida.
Desdobrando, a experiência filosófica nos liberta, ampliando nossas possibilidades de vida e modos de viver. Na medida em que nos permite identificar como determinados modos de pensar e viver foram se constituindo, e com isso os interesses que estão em jogo, aquilo que antes nos atingia como sendo essencial para a nossa vida perde o seu valor. Assim, é desnecessário dizer o quanto a mídia, o padre, o apresentador de auditório, os ideais (de beleza, de mãe, de professor, etc.), os especialistas de todos os tipos e demais fontes de discursos legitimados na sociedade perdem muito da força com que constrangeriam o nosso modo de viver.
Não há o que falar em abstração e mundo das ideias em filosofia, isso seria uma limitação de uma filosofia empobrecida. A filosofia pode modificar nossas percepções, o que vai muito além da ideia rasa de que a filosofia ficaria só tagarelando sobre ideias.
É verdade que se nos restringimos a conhecer um pouco de alguns pensadores como Platão, Sócrates, Descartes, Aristóteles e outras figuras mais carimbadas, sobretudo a partir de obras iniciantes, não vai mudar muita coisa em nossa vida. Mas falo daquele que ao longo da sua vida, ainda que não seja “especialista”, se dedica à grande aventura do pensamento – enfim, a filosofia. Aqui estamos diante de uma vida que nunca mais vai ser a mesma. Porque aqui a filosofia opera, sobretudo com intensidades, sensibilidades e afetações.
No limite, nosso corpo e nosso pensamento ampliam as possibilidades, e consequentemente nossos modos de sentir e vivenciar, enfim, outras possibilidades e modos de vida se tornam possíveis, indo muito mais além não só daquilo que esperam e querem que sejamos, como daquilo que podemos nomear.
Não creio que é possível esgotar em um texto o que podemos fazer em nossas vidas a partir da Filosofia, enfim, que “utilidades” – para usar o vocabulário com que costumam interpelá-la – ela pode ter. Dentre tantas possibilidades, acho fundamental não perder de vista algo mais sofisticado para responder à ironia que muitas vezes o mundo técnico e utilitário, de pensamentos enlatados, pessoas com cabeças de jornal e instituições com interesses perversos nos colocam – para que serve a filosofia? Deleuze diz que a resposta deve ser agressiva – se preferir, também irônica: a filosofia serve para prejudicar que a tolice e a imbecilidade sejam maiores do que já são, serve para denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas (Nietzsche e a Filosofia, G. Deleuze).
* Transcrição de trecho da aula Pensamento e liberdade em Espinoza em vídeo de Cláudio Ulpiano (um pensador incrível na história da filosofia brasileira).
Imagem: Raul Lemesoff dirigindo um Ford Falcon 1979 transformado em um tanque de guerra e funcionando como uma biblioteca móvel que percorre as ruas de Buenos Aires.
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