É provável que, em todo o mundo, ninguém saiba mais sobre a transmissão de doenças entre animais e humanos do que Dennis Carroll. É ele quem protagoniza a primeira cena de “Pandemic”, o documentário que acompanha os esforços de vários especialistas na luta contra uma eventual pandemia de gripe. O norte-americano rondava uma antiga vala comum do início do séc. XX, onde se suspeita que tenham sido enterradas muitas das vítimas da peste espanhola que infetou centenas de milhões de pessoas em 1918.
“Este túmulo é um lembrete da devastação que uma pandemia da gripe pode criar. Este tipo de carnificina não é coisa do passado. Quando falamos de outra pandemia, não é uma questão de ‘se’, mas de ‘quando’”, explica. Quis a história que a pandemia que previu não fosse de Influenza, mas de um coronavírus. Em comum, têm a sua origem, em animais que por sua vez a transmitem aos humanos.
Mais recentemente, abordou a pandemia de Covid-19 e alertou que os morcegos, tal como deram origem ao atual surto, foram também os responsáveis pela última epidemia de Ébola, particularmente porque a espécie tinha tendência a alojar-se em casas, o que aumenta a probabilidade de uma transmissão interespécies.
Quando questionado sobre a possibilidade da existência de perturbações na natureza que potenciem essa proximidade, Carroll foi claro. “A perturbação ao ambiente [dos animais] somos nós. Nós é que invadimos cada vez mais zonas que antes não habitávamos”.
Para o investigador, há outro nome a colocar na lista de culpados, bem acima da inércia dos governos em parar a pandemia ou até dos morcegos que incubaram o vírus: os seres humanos e a invasão de territórios habitualmente habitados por espécies selvagens.
O aumento das doenças infecciosas
Em 2014, o “The Royal Society” apresentava as conclusões de um estudo sobre o aumento global de epidemias de doenças infecciosas. A conclusão, que analisou dados de 1980 a 2010, comprovou que se têm verificado mais surtos — muitos deles de doenças já conhecidas e que têm atormentado a humanidade durante séculos.
A organização não-governamental EcoHealth Alliance foi mais longe e analisou todos os surtos desde 1940, para chegar à conclusão de que a taxa de transmissão de vírus entre animais e seres humanos é duas a três vezes mais frequente do que nas anteriores quatro décadas — e essa é uma tendência que se deverá manter se nada mudar.
Também o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças estima que três quartos das novas ou doenças emergentes que infetam humanos têm origem animal. Isto não acontece por acaso. Desde as épocas em que os europeus partiram à descoberta de novos mundos, que doenças fatais têm surgido — e o denominador comum é precisamente a invasão humana de ecossistemas que até então estavam isolados. E quanto maior o contacto, maior é a probabilidade destas doenças zoonóticas — que se transmitem de animais para humanos — provarem surtos.
A invasão humana
“O fator mais importante para prever estes eventos de transmissão é o aumento da desflorestação — o aumento das terras para cultivo agrícola e, mais especificamente, para a produção agropecuária”, frisa Carroll na mais recente entrevista à revista “Nautilus”.
São muitos os relatos de especialistas da área e investigadores que têm poucas dúvidas que o aumento destes fenómenos está intimamente ligado à constante destruição da biodiversidade. À medida que o Homem irrompe por florestas e ecossistemas e se estabelece em zonas mais próximas de animais selvagens, maior é a probabilidade de os vírus saltarem de um hóspede para o outros.
Outra voz crítica é a de David Quammen, autor de um livro sobre infeções animais e pandemias. “Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens que estão recheadas de espécies animais e plantas — e entre todas essas criaturas existem vírus desconhecidos. Cortamos árvores, matamos animais ou enjaulamo-los e mandamo-los para os mercados. Perturbamos ecossistemas e agitamos os vírus para fora dos seus hóspedes naturais. Quando isso acontece, eles procuram outro hóspede. Na maioria das vezes, o novo hóspede somos nós”, explicou no “The New York Times”.
“Um enorme conjunto de vírus já estão em circulação, sendo que só nos apercebemos deles quando existe transmissão e as pessoas começam a ficar doentes”
Também Carroll explica que “sejam quais for as futuras ameaças que vamos enfrentar”, é bem provável que elas já estejam a circular na vida selvagem. “Um enorme conjunto de vírus já estão em circulação, sendo que só nos apercebemos deles quando existe transmissão e as pessoas começam a ficar doentes.”
Ébola, MERS, SARS, Gripe Aviária, HIV, são alguns dos exemplos mais recentes de doenças infecciosas com origem animal. “A maioria dos agentes patogénicos está por descobrir. Estamos apenas a ver a ponta do icebergue”, afirma Thomas Gillespie, professor de ciências ambientais na Universidade de Emory, em declarações ao “The Guardian”.
O académico revela que somos nós próprios que estamos a criar condições perfeitas para o surgimento e disseminação destas doenças, à medida que vamos derrubando as diversas barreiras que nos separam dos animais que hospedam estes vírus de forma perfeitamente natural.
Um apetite insaciável (e potencialmente mortal)
Há vários anos, algo muito semelhante ao novo coronavírus foi detetado numa gruta em Yunnan, província a 1.500 quilómetros de Wuhan, região onde surgiu o surto de Covid-19.
Investigadores do Instituto de Virologia de Wuhan — um dos mais avançados e seguros do país — revelaram, em 2017, que dessas colheitas em Yunnan, surgiram provas da existência de vários coronavírus em diversos morcegos de quatro espécies diferentes. “O genoma desse vírus é 96% idêntico ao vírus que surgiu em Wuhan”, nota Quammen.
Foi, no entanto, necessário surgir outro ponto de ligação e, nesse preciso momento, os mercados de animais vivos de Wuhan foram preciosos. Locais onde animais selvagens como lobos, ratos, raposas, pangolins e crocodilos são mantidos vivos, abatidos na hora e vendidos frescos aos clientes, são “a tempestade perfeita para transmissões de agentes patogénicos entre espécies”, nota Gillespie. Esses mercados foram entretanto abolidos pelo governo chinês.
Vende-se quase tudo nos mercados de animais vivos
“É na preparação destes animais que há uma exposição. Assim que está cozinhado, o vírus está morto. O ambiente mais comum de transmissão é através da disseminação do animal ou do seu abate, quando os seus fluídos, sangue e secreções são expostas. Com a gripe aviária que teve origem em galinhas, muita da exposição e das infeções remontam à fase de preparação dos animais para consumo”, esclarece Carroll.
Propagação à velocidade da luz
O momento crítico da primeira transmissão do hóspede animal para humanos é habitualmente silencioso. Depois, tudo se processa de forma invisível, pelo menos até ao surgimento dos primeiros sintomas. A partir daí, o surto dependerá da capacidade de disseminação do vírus — e também aqui o mundo criado por nós é um potenciador de uma pandemia.
Num mundo iminentemente urbano onde mais de metade da população vive em cidades — uma tendência que os cientistas apelidam de “um emergente desastre humanitário” —, a propagação de uma doença faz-se a velocidades assustadoras.
O clima também é um fator a ter em conta, já que “as implicações de semelhantes alterações climáticas numa população de 9 mil milhões de pessoas, colocam uma ameaça nas conquistas do último meio século nas áreas do desenvolvimento e da saúde mundial”, revelavam investigadores já em 2015, no “The Lancet”.
Embora quase todos os especialistas concordem que a pandemia atual era inevitável, como serão muitas outras que se seguirão nas próximas décadas, poucos ousam traçar um cenário para o rumo que irá tomar a Covid-19.
Nas palavras de David Quamman, estamos entregues à nossa sorte. “Surtos de novas doenças virais são como as bolas de metal numa máquina de pinball: podem bater nos flippers, abanar a máquina, atirar as bolas contra os obstáculos, mas o sítio onde elas vão cair está tão dependente da sorte como de qualquer coisa que façamos. Isto é particularmente verdade para os coronavírus: sofrem mutações muito facilmente enquanto se replicam e desenvolvem-se de uma forma assustadoramente rápida”.
Fonte: nit.pt
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