Amor

Os crimes não catalogados contra o coração

Acho que algumas formas de ‘amar’ deveriam ser crime.

Deveria ser crime seduzir alguém quando não se está disponível afetivamente. Despertar sentimentos num coração que andava sereno, gerar sonhos nos olhos do outro para depois abandoná-los sem se responsabilizar.

Deveria ser crime agir de má fé com um coração, prevendo o resultado lesivo de uma conduta e, mesmo assim, leva-la adiante, consumando o ato.

Deveria ser crime amar com a intenção de ferir, descarregar as dores de uma vida na pele da apaixonada vítima.

Deveria ser crime o bullying com as carências afetivas. Levar na brincadeira o que no outro é tão sério. Desrespeitar e fazer troça dos sintomas da paixão evidentes nas atitudes do outro.

Deveria ser crime o egoísmo de querer o desejo de alguém que não se quer.

Querer alguém te amando quando não se tem nada para oferecer. Colocar em banho maria corações ansiosos e sedentos. Pedir para que esperem uma resolução que nunca virá.

Deveriam ser crime as mentiras ditas para ganhar tempo.

Querer a lealdade dos sentimentos do outro quando tudo que se pode oferecersão intermináveis incertezas.

Deveria também ser crime dispensar um coração sem tomar cuidado. Descartar pessoas como roupas velhas. Dizer adeus sem olhar nos olhos, ou pior, nunca dizer adeus. Terminar por mensagem telefônica. Ou pior, não terminar e deixar a ficha do outro cair ao desfilar sem piedade com outro alguém ao lado.

Deveria ser crime despedaçar um coração covardemente, sem aviso prévio, sem honestidade, sem dar tempo para que ele processe a informação.

Deveria ser crime a covardia de não colocar as cartas na mesa.

A mania de criar um time reserva de corações esperançosos, sem avisa-los que eles, na verdade, são café com leite nesse jogo e nunca entrarão em campo.

Deveria ser crime o jogo sujo de criar uma fantasia que não existe. Só para alimentar o ego? Só pelo vício nessa droga que custa caro e tem efeito tão curto, chamada sedução.

Deveriam ser multados os repertórios manjados, os apelidos repetidos, as performances sexuais, a massificação do sentir. As atuações que visam capturar a ingenuidade (ou a vontade de se entregar) da outra pessoa.

Deveria ser crime a falta de criatividade amorosa.

Deveriam ser banidos os roteiros artificiais, os jogos de esquenta e esfria que só querem tornar os corações vassalos de suas vontades.

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Deveriam ser punidos com multa o jogo de roleta que só quer flechar corações ao léo, pela sorte (ou azar).

Deveriam entrar em programas de reinserção social as pessoas que se auto-sabotam amorosamente, que têm medo de sentir e viver algo mais profundo, que preferem o poder ilusório da frieza e o falso pedestal da invulnerabilidade. Deveriam passar por programas de reeducação emocional as pessoas que não sabem mergulhar de cabeça numa história amorosa.

Deveriam voltar para o jardim da infância, para reaprender o beabá de amar, as pessoas que confundem amor com contrato de posse.

Deveriam fazer trabalhos humanitários as pessoas que são ditadoras amorosas, controlando e punindo as atitudes, os pensamentos e os sentimentos alheios.

Deveriam estudar democracia social os corações militares que entendem que amar e viver é seguir regras externas e formatar e punir severamente as opiniões e os comportamentos julgados inaceitáveis.

Deveriam ser crime as torturas emocionais e a produção do medo. (aliás, acho que isso é crime mesmo).

Deveriam ser crime as censuras impostas aos corações que batem em outros peitos e que, justo por isso, são donos de si mesmos.

Deveriam ser banidos da face da Terra os relacionamentos que seguem a falida estrutura de recompensas, ameaças e castigos.

Deveriam ser interditados os agentes podadores de asas, os formatadores de gestos, os que ‘amam’ se importando com o que os outros pensam. Os que pensam que o ser amado é uma massinha de modelar, pronta para se adaptar às vontades de um coração perfeccionista e mimado.

Quantas pessoas tiveram o coração assaltado, sentimentos assassinados, espontaneidades massacradas?

Quantas pessoas tiveram que matar os próprios sentimentos inúmeras vezes?

Quantos são os amores corruptos, querendo somar vantagens, acobertando seus verdadeiros eus?

Anda a olhos nus, se alastrando por aí, a máfia do amar.

E só por que se usa a palavra ‘amor’ todos estão imunes, libertos, salvos.

O amor esconde os crimes.

As vítimas não recebem justiça e têm que arcar sozinhas com os lutos e os danos morais.

Deveria ser crime usar a palavra amor para justificar esses atos.

Clara Baccarin

Clara Baccarin é paulista dos interiores, nascida nos anos 80. É escritora, poeta e agitadora cultural. Faz parte do grupo editorial Laranja Original. Publicou, pela editora Chiado, o romance poético Castelos Tropicais (2015) e a coletânea de poemas, pela editora Sempiterno (2016), Instruções para Lavar a Alma. Em 2017 lança, em parceria com músicos e compositores, o álbum Lavar a Alma, que reúne 13 de seus poemas musicados. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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