Dos ritmos considerados brasileiros, o que mais ouço é a bossa nova. Admito, não faço isso por gosto. É para tentar assimilar como uma primária mistura de jazz com samba pode ter obtido tanto êxito mundo afora. Por que letras do naipe de “O pato”, “O barquinho”, “Lobo bobo” são consideradas clássicos indeléveis da MPB.

E ainda para compreender como Vinicius de Moraes, um dos maiores poetas nacionais, teve a manha de escrever aquela letra de “Garota de Ipanema”. Só pode ter tomado uns Ballantines a mais, na rua Montenegro, junto ao Antônio Carlos Jobim.

A bossa nova me atrai menos por suas notas dissonantes, seus trinados minimalistas, do que por suas incongruências e paradoxos. Um deles é o Guilherme Arantes ser classificado como bossanovista. A outra é a bancarrota financeira de seu principal criador, o baianíssimo João Gilberto.

Há anos enfrentando sérios problemas econômicos, o rei da bossa nova foi pressionado recentemente por familiares a pegar empréstimos bancários: sua dívida gira em milhões de reais.

Se João Gilberto fosse o Beck — que toca guitarra, teclado, baixo, bateria, harmônica, cítara e ainda faz vocal — a gente entenderia um estado de penúria desses.

Mas o JG, em seus shows, apenas toca violão e canta. O “canta” aqui não é uma orgiástica performance à la Michael Jackson, com saltos mortais, moon walks e pianos pendurados no teto. É aquela indolência de Santo Amaro da Purificação. Então como ele pode estar devendo tanta grana assim?

Muitos acreditam que a insolvência ocorreu porque o intérprete viajava pelo planeta na companhia de um otorrinolaringologista.

É a sua obsessão com a voz, evidente. Por outro lado, Keith Richard — provavelmente em função do péssimo estado de seus dentes carcomidos pela heroína — faz turnês sempre escoltado por um odontólogo. Nem por isso arruinou-se e procurou o gerente do banco. Logo, mesmo que o otorrino de JG fosse o dr. Sabin, toda essa inadimplência não seria justificável.

Muita gente vê menções à uma inabilidade contábil, aliada à gastança, nas entrelinhas das canções que JG entoava, como em “Wave”: “O resto é mar. É tudo que não sei contar. São coisas lindas que eu tenho pra te dar”

Ou seja, ficava brisando na praia do Arpoador, não estudou Matemática direito e presenteava as musas com mimos caros. Deu no que deu. Moral: João Gilberto lembra aquela velha anedota que faziam com o Pelé — ganhou dinheiro com a garganta e perdeu com a cabeça.

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Carlos Castelo é psicanalisado, escritor, letrista e um dos criadores do grupo de humor musical Língua de Trapo. É colaborador do Estadão e das revistas Bravo, Ponto (Sesi-SP) e Bula. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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