Se reconhecer uma mulher privilegiada é um processo demorado. É preciso passar por inúmeras desconstruções para aceitar que os conflitos e injustiças pelas quais passamos não são tão intensos assim quando comparados com a realidade de outras mulheres. A partir do reconhecimento dos nossos privilégios, podemos mudar nossa perspectiva e começar a lutar para que todos possam usufruir dessa relação.
De acordo com o sociólogo Jessé de Souza em uma entrevista para a Carta Capital em junho de 2017, existem duas classes privilegiadas no Brasil, a classe alta e a classe média. A classe alta é uma parcela mínima da população, ou o que a gente conhece pelos famosos títulos como “o 1% mais rico do Brasil”, o que é uma exceção na realidade do país. Essa classe se restringe a dominar o capital econômico e é mais fácil de se reconhecerem privilegiados, visto que possuem bens que o próprio país depende para se desenvolver.
Já a classe média não, e é aqui que a grande maioria da cegueira privilegiada se encontra. Essa classe tem o capital cultural, que envolve três pilares: a educação, a cultura e o social.
Na Educação
73% dos brasileiros não são plenamente alfabetizados, 3 milhões de crianças de 4 a 17 anos estão fora da escola e em 2014, 55,5% as mulheres não eram alfabetizadas no Brasil no contingente de 25 anos ou mais de idade. Todos estes dados coletados pelo MEC e pelo IBGE representam a realidade da educação no país. Se você não se encaixa em nenhum deles, é porque você é privilegiada.
A educação pública, apesar de ser um direito garantido pela Constituição, não apresenta qualidade necessária ascender o estudante quando comparado ao ensino dado em uma escola particular. Quanto mais dinheiro investido na educação, mais privilégios esse jovem vai ter. Se o mercado de trabalho exige qualificação, ela é simbolizada através de cursos de Inglês, cursos de informática, esportes, pós-graduação, MBA, ou seja, em estudos que só poderão ser realizados por aqueles que têm capital para isso e é ai que começa a falta de reconhecimento do privilégio.
Quando o colégio vira apenas uma fase de transição e não uma conquista, ele não é valorizado. Parte da classe média brasileira que sabe ler e escrever nunca cogitou a possibilidade de que num país com 13 milhões de analfabetos, o fato de ser alfabetizado é um privilégio.
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Na Cultura
Um dos entendimentos de Cultura é de tudo aquilo que envolve a criação artística da humanidade, ou seja, literatura, música, cinema, dança, teatro, artes plásticas, entre outros. No entanto, para se criar estas Artes, é preciso ter acesso a elas e é nesse ponto que um grupo é mais privilegiado que o outro.
Segundo o IPEA, em 2017, dos 5560 municípios do Brasil, 52% não possuem uma livraria, 92% não têm salas de exibição para filmes, 83% não possuem museus e 80% não têm salas de espetáculos. Se na sua cidade tem livraria, cinema, museu e teatros, você é privilegiada.
A formação cultural de uma pessoa é importantíssima para seu lazer e intelectualidade. Na ausência de mecanismos de produção e consumo de arte, o indivíduo perde a sua singularidade e a sua capacidade de criar que é própria do ser humano. Mais uma vez, o que é presenciado é uma classe que consome arte justamente por possuir poder de compra. Ir ao cinema todo final de semana ou ir a um show é uma questão de status.
Sem o prazer que a Arte devia proporcionar, ela vira apenas mais uma relação de consumo. Dessa forma, seu papel de formadora é substituído pelo entretenimento. O grande problema é a falta do reconhecimento desse privilégio. Para uns, em que a realidade é o trabalho e o marasmo de uma vida sem arte, um cinema na cidade faria toda a diferença na sua convivência. Para aqueles em que o maior problema do cinema é o tamanho da fila, um filme a mais ou a menos na rotina não muda tanto assim.
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Na Sociedade
Na sociedade brasileira, os privilégios mais contrastantes são em relação a negros e brancos. Alguns dados relevantes apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que:
– Somente em 2089, brancos e negros terão uma renda igualitária no Brasil
– Nos últimos 10 anos, o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, já o de brancas caiu 10% no mesmo período
– A população negra corresponde a 78,9% dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios no Brasil
– Só 10% dos livros brasileiros publicados em 50 anos no país foram escritos por autores negros. Entre 2002 e 2014, apenas 31% dos filmes nacionais possuíam atores e atrizes negras, na maioria das vezes, em papeis subalternos
Além disso:
– Segundo o IBGE, 44% das mulheres não denunciam o marido por ser dependente financeiramente dele
– 59,4% das mulheres que sofrem agressão são negras, segundo a Secretaria de Políticas Públicas da Presidência.
– 27% das mulheres negras agredidas pelo marido eram dependentes financeiramente dele, enquanto brancas são 22%, segundo IBGE
Se você não faz parte de nenhuma dessas estatísticas, você é privilegiada.
O que mais assusta dessas estatísticas é a relação que elas têm com dois tópicos, o da violência e o da pobreza. Viver sob a sombra da violência faz com que problemas que parecem grandes do ponto de vista do privilegiado se tornem pequenos quando essa realidade vem à tona.
Segundo a escritora negra Conceição Evaristo em uma entrevista para o coletivo Maçã Podre, em 2013, o feminismo veio não para “libertar a mulher negra”, mas sim para afirmar a mulher negra como pessoa. Enquanto muitas mulheres brancas feministas reconhecem um relacionamento abusivo e conseguem sair dele para garantir a sua liberdade, a mulher negra periférica sofre de violência doméstica e luta para não depender financeiramente do homem que a violenta. A mulher branca, durante muito tempo, foi a patroa da mulher negra no Brasil e, infelizmente, não reconhece sua dominação e privilégio nesta relação.
Por isso, é preciso falar de privilégios. Acabar com a falácia de que educação, cultura e dignidade são “direitos” no país é o primeiro passo para reconhecer seu papel de privilegiada nesta sociedade. Se uma grande parcela da sociedade – que é privilegiada – acha injusto o acesso gratuito à educação, cultura e dignidade à outra parcela que não detém do capital econômico, então esses pilares não são “direitos” e sim, privilégios e um dos principais objetivos de cada privilegiado é justamente lutar para a igualdade de direitos prevalecer.
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