O mundo anda pior? O mundo melhorou nos últimos tempos? Segundo estatísticas, jamais estivemos tão bem. Ainda assim, temos a sensação de que algo vai mal.
Mas se os números não mentem, deveríamos nos curvar diante deles e dar um jeito de superar essa sensação de que tem alguma coisa errada acontecendo? Ou há algo de útil a aprender quando ouvimos nossa voz interna, por mais incógnita que seja o dialeto em que fala?
O futuro descortinado por Black Mirror, a série britânica que se popularizou graças à Netflix, é um mundo magnífico. Graças a tecnologia, o ser humano é capaz de estender sua vida consciente em realidades virtuais onde tudo é empolgante e perfeito; criar minúsculos robôs que mantêm o equilíbrio ecológico; ampliar a comunicabilidade e interação humanas de formas sem precedentes; inventar mecanismos para registro de cada precioso momento de nossas vidas. Isso tudo e outras tantas maravilhas.
A sociedade retratada por Black Mirror poderia ser a antecâmara da utopia. No seriado, a humanidade poderia estar celebrando, em antecipação, a proximidade de uma era em que venceríamos com a tecnologia os entraves que atormentaram nossos antepassados por milênios. Fome, doença, velhice, miséria, mesmo a mortalidade: pela ciência, estaríamos prestes a derrotar nossos monstros.
Porém, não é isso o que ocorre. Em todos os episódios, os personagens estão cercados de milagres tecnológicos, mas levam vidas miseráveis.
Por que é assim? É porque Black Mirror na verdade não fala de tecnologia, mas de algo muito antigo e mesmo assim ainda pouco conhecido por nós. Pois a tecnologia apenas derrota os monstros externos, e há um monstro interno que jamais enfrentamos: A estupidez humana.
Quando se afirma que as coisas andam mal, que a humanidade nunca foi tão violenta e indiferente ao sofrimento alheio, alguém sempre argumenta que a humanidade sempre foi violenta e que também sempre houve miséria. No máximo, graças à tecnologia de hoje, as tragédias humanas têm maior visibilidade e chegam mais rápido ao nosso conhecimento.
E, justiça seja feita, essa opinião está certa, pois a história humana prova, à saciedade, o quão cruéis tendemos a ser uns com os outros desde nosso passado mais remoto.
Mas isso é apenas um lado da equação. A tecnologia não tem apenas um efeito passivo, de registro e divulgação. Ela não se limita a aumentar a visibilidade das desgraças humanas. A tecnologia, em determinado momento, passou não só a facilitar a manifestação de nosso lado mais violento e estúpido, como também a amplificar os seus efeitos nefastos.
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Em 1986, o sociólogo alemão Ulrich Beck propôs entrarmos numa nova etapa da história. Essa nova etapa ele chamou de “sociedade de risco”.
Estaria ocorrendo, segundo Beck, uma ruptura tão grande entre a sociedade industrial do século XX quanto foi a ruptura com a sociedade feudal. A partir de nossa era, as inovações técnicas fariam com que os riscos a que estamos sujeitos tomassem proporções cada vez maiores, até o ponto em que as instituições sociais não poderiam mais nos proteger adequadamente.
Isso era resultado daquilo que Beck chamava de reflexividade: a modernização criada para tornar nossas vidas mais confortáveis multiplica e amplia, por outro lado, as formas de sofrermos. Um dos mais eloquentes exemplos seria o desastre de Chernobyl, em que a incompetência humana, inclusive política, deflagrou uma tragédia humana e ecológica sem precedentes.
Porém, essa reflexividade da tecnologia não aumenta apenas os riscos de acidentes monumentais. Ela também cria novas formas de causarmos mal uns aos outros e amplia o impacto de nossas mais tradicionais formas de violência.
Há certo consenso de que, em termos históricos e geopolíticos, o século em que vivemos começou com o ataque de 11 de Setembro ao World Trade Center. E não se trata apenas de uma identificação simbólica sobre o terror e o fundamentalismo.
Aquele ataque desencadeou a sequência de fatos (invasão do Iraque, nascimento do ISIS, atentados de fundamentalistas, ações terroristas de “lobos solitários”, crise na Síria, ondas migratórias na Europa, atritos entre a Rússia e a OTAN,…) que caracterizam nossa era.
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E foi o atentado de 11 de Setembro que demonstrou o poder da tecnologia para facilitar e amplificar o terror. Os terroristas conseguiram organizar-se e comunicar-se com os mentores do atentado com facilidade. Graças à automatização das cabines de controle e aos simuladores de voo, nunca foi tão fácil para um leigo tomar breves lições e já ser capaz de conduzir um avião comercial na direção de um alvo.
Osama bin Laden podia, após o ataque, imediatamente falar ao mundo todo dentro de uma caverna oculta em uma região inexpugnável no Oriente Médio. Atualmente, a ação de lobos solitários e a divulgação de ideias extremistas é incrivelmente facilitada pela tecnologia.
Não se trata de ser neoludista e ver a tecnologia como origem de todos os males. De forma alguma: a tecnologia é tão neutra como uma faca, que pode cortar um pão ou cortar um pescoço. Ela é uma ferramenta que pode ser útil ou terrível, pois tudo depende da mão de quem a maneja. Esse é o ponto aqui.
O que Black Mirror faz é evidenciar que mesmo sob as melhores condições materiais, mesmo na prosperidade e diante de milagres tecnológicos, o ser humano prossegue tornando a sua vida e a vida dos outros um inferno. A sociedade de risco em que vivemos tem o mesmo efeito da série e deixa claro algo que sempre nos escapou enquanto espécie: a extensão e profundidade da estupidez humana.
Hannah Arendt afirmava que o mal era banal entre os seres humanos — a ponto de nós o praticarmos sem nem ao menos perceber. Mas nessa falta de percepção não há apenas cegueira ideológica ou fraqueza moral: há também a simples e pura falta de inteligência.
Um exemplo pode ilustrar com eloquência. Em 1938, a humanidade descobriu a fissão nuclear. Menos de uma década depois, em 1945, já havíamos detonado a primeira bomba atômica.
E bastou apenas algumas poucas décadas para que tivéssemos fabricado um arsenal nuclear capaz de destruir este planeta, o único planeta conhecido capaz de abrigar a vida, meia dúzia de vezes pelo menos. E, como se isso não bastasse, apontamos todas essas armas uns para os outros devido a uma disputa ideológica entre blocos econômicos.
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Creio que antes, para o observador mais atento e frio da história humana, um fato já fosse evidente. Mas com a corrida nuclear do século XX, esse fato foi finalmente escarrado na nossa cara:
A humanidade não era só propensa à maldade, também incrivelmente estúpida, burra mesmo.
E sequer precisamos lembrar da corrida nuclear. Toda a história do século passado e as notícias do momento presente deixam claro que utilizamos uma tecnologia capaz de resolver nossos principais problemas e reduzir a dor humana para, ao contrário, aumentar a dor e criar formas de destruirmos não só nossa civilização, como também a vida de toda a Terra.
Ao longo de muito tempo, nós observamos os animais ao nosso redor e concluímos que, como inventamos a roda e fazíamos fogo, éramos uma espécie incrivelmente inteligente. Afinal, nosso único critério de comparação eram quadrúpedes que grunhiam.
Nós nos tínhamos em alta conta, e por milênios prosseguimos assim, fascinados por nossa destreza em construir castelos e atravessar oceanos. Mas quando a tecnologia se desenvolveu a ponto de interferir de forma decisiva em nossa vida, dando-nos poder para potencializar o resultado de nossas atitudes, ficou claro que somos um animal um bocado estúpido.
Sim, aprendemos alguns truques, temos alguma inventividade, mas somos não só incapazes de desmontar as armadilhas e prisões que criamos para nós mesmos, como utilizamos boa parte da nossa inventividade para aprimorar essas armadilhas e prisões.
Pense nos principais problemas humanos deste momento: miséria, guerras, terrorismo, genocídios, fuga de refugiados, poluição, hostilidades políticas, crises econômicas. Todos esses problemas, que fazem muitos de nós sofrerem e até mesmo perderem suas vidas, não têm uma causa externa ao ser humano. Todos foram criados por nós, e ainda existem por não termos inteligência suficiente para escapar das ciladas que nós próprios construímos.
“Precisamos admitir que a história humana é a história da estupidez”, disse Stephen Hawking numa palestra em Cambridge em 2016, quando ele tratou do terrível ou empolgante futuro da inteligência artificial.
É que a tecnologia deixa evidente a estupidez humana por outro caminho, distinta da sociedade de risco. Como já disse, até agora a humanidade só podia comparar-se com quadrúpedes, e por isso tinha em alta conta sua pouca inteligência.
Agora, começamos a antever o surgimento de máquinas capazes de desenvolver uma inteligência até mesmo superior à nossa (isso antes era objeto de piada, agora é assunto sério e debatido entre cientistas e especialistas), e só a concepção de que isso pode realmente ocorrer cria um contraste em que nossa desastrosa estupidez fica por fim evidente.
A humanidade sempre enfrentou graves e trágicos desafios, e quase sempre tentou resolvê-los buscando algum culpado, algum inimigo. Nunca nos ocorreu que nossa falta de inteligência era o principal entrave para resolvermos esses desafios. Pior ainda, nunca nos ocorreu que nossa estupidez é, ao menos em parte, a origem da maioria de nossos males, e que poderá ser a causa de nossa autodestruição.
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Neste momento em que reconhecemos que a nossa estupidez é um dos nossos maiores (ao lado da banalidade do Mal identificada por Hannah Arendt) monstros internos, deveríamos declarar guerra a ela. E, reconhecendo isso, Hawking cogita se a tecnologia da inteligência artificial poderia nos ajudar nesse combate. Mas como gato escaldado, ele também teme que ela possa, como muitas tecnologias, apenas aprofundar o sofrimento humano.
A resposta é banalmente simples: se iremos utilizar as tecnologias futuras para criar a utopia ou a distopia depende de não sermos estúpidos agora. Precisamos iniciar essa batalha utilizando as ferramentas que temos agora à nossa disposição, para ampliar nossa consciência e lucidez.
E nem todas essas ferramentas são tecnológicas: muitas delas, como a meditação, estiveram à disposição por séculos. E mesmo as tecnológicas dependem de nossa determinação e bom senso: atualmente, a internet e as redes sociais parecem servir para nos separar e aprofundar hostilidades, e isso precisa mudar. Afinal, a internet pode ser o berço da consciência coletiva — mas isso é outra história.
Via nossa página parceira Ano Zero
Autor: Victor Lisboa
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