Há algumas semanas o médico Cory Michael, radiologista, publicou um texto intrigante sobre como os médicos vivenciam o luto de forma diferente do restante da população. Embora eu não concorde com ele em alguns detalhes, tenho que admitir que ele acertou no ponto exato quando identificou essa vivência diferente dos médicos perante o luto.
Segue abaixo o texto traduzido, para quem quiser entender do que estou falando.
“Quanta experiência você tem com o sofrimento humano?” Essa pergunta me foi feita na minha primeira entrevista para admissão na faculdade de medicina, e me surpreendeu. Eu estava esperando que me perguntassem sobre minha experiência como voluntário, minhas pesquisas, ou sobre meu desejo de me tornar médico. A simples verdade é que a grande maioria de nós não tem grande experiência com o sofrimento humano quando estamos vivendo na casa dos 20 anos.
Não compreendi a relevância dessa pergunta do entrevistador até muito mais tarde na educação médica. O sistema de ensino dos médicos é muito mais focada na fisiologia do corpo humano e suas falhas do que nos aspectos humanísticos dos cuidados aos pacientes, e quase sempre nossas qualificações são medidas através de simples testes de múltipla escolha. Interpretar exames laboratoriais e tratar sintomas quantificáveis formam o esqueleto da educação médica.
As coisas começaram a mudar para mim durante meu internato, quando uma paciente (Mrs. G.) me mostrou a realidade do nosso sistema de saúde. A história dela era incrivelmente comum (infelizmente). Ela não tinha seguro saúde e estava na casa dos 60 anos (jovem demais para utilizar o Medicare), e vinha convivendo com um diabetes não controlado e suas complicações por muitos anos, até que chegou ao hospital com uma úlcera na perna que não cicatrizava. No decorrer do tratamento, que incluiria uma cirurgia na tal úlcera, foi descoberta uma insuficiência renal avançada, e ela ainda sofreu dois acidentes vasculares cerebrais e um ataque cardíaco até que sua permanência no hospital terminasse.
A necessidade de diálise praticamente aprisionou-a no hospital, uma vez que nenhum serviço de diálise ambulatorial aceitava tratar pacientes sem seguro saúde, e sua família (em outro estado) não conseguia transferi-la para um local mais próximo pelo mesmo motivo. Sua debilidade era tanta que era quase certo que precisaria de uma enfermeira o tempo todo em casa, e rapidamente aprendi que esse tipo de serviço só é acessível a quem já esgotou completamente suas reservas financeiras, e nesses casos o seguro social entra em ação. Não é incrivelmente triste que todo o trabalho de uma vida simplesmente desapareça quando você mais precisa dele?
Sem dúvida Mrs. G. estava tendo dificuldades para lidar com tudo aquilo, mas ela não demonstrou isso quando tentei me comunicar com ela com mais frequência. Sua família estava convencida de que ela se recuperaria e recusava veementemente a possibilidade de que ela não sobreviveria. A inabilidade para aceitar o inevitável provavelmente acaba prolongando o sofrimento, muito mais do que qualquer outro aspecto do nosso sistema de saúde. Ela não sobreviveria à internação hospitalar.
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Como sempre, não temos palavras de conforto quando nossos pacientes morrem. Nós lamentamos e afirmamos que fizemos tudo o que foi possível, e em geral isso é o suficiente. Essa é uma rotina que vivenciamos com tanta frequência que acabamos nos dessensibilizando em relação à morte. Se não o fazemos, não conseguimos realizar nosso trabalho. Eu gasto horas e horas avaliando a resposta de pacientes com câncer à quimioterapia, até o ponto no qual eu mesmo pediria para não receber mais nenhum tratamento se a tomografia fosse minha. Esse é o motivo pelo qual médicos são, em geral, péssimos pacientes.
Conforme o tempo foi passando, eu comecei a experimentar minhas perdas pessoais. No período de 3 anos, uma amiga perdeu o marido com câncer no fígado, outra perdeu o esposo com uma doença cardíaca, outro perdeu sua noiva com complicações do diabetes, um colega da faculdade perdeu a esposa (ela se suicidou), outro amigo sofreu um derrame, e uma sexta amiga morreu de câncer de colo uterino metastático. Todos esses seis amigos estavam apenas na faixa dos 30 anos. Meu coração se partiu com cada um deles, mas a natureza do meu trabalho me impediu de vivenciar o luto ou expressar condolências de uma forma normal.
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O tempo que a medicina exige de nós também pode nos manter afastados daqueles a quem amamos e que precisam de nós. Meu padrasto teve leucemia e rapidamente se debilitou após um transplante de medula óssea mal sucedido durante meu internato. Eu estava de plantão à noite, e quando cheguei ao quarto dele no dia seguinte para visitá-lo já era tarde demais. Eu não pude me despedir. Só consegui comparecer ao funeral. Quando retornei, soube que Mrs. G. tinha falecido rapidamente após sua terceira cirurgia, no 43º dia de hospitalização. Eu também não pude estar lá com ela, mesmo sabendo que não poderia ter feito nada que mudasse seu desfecho.
Minha mãe, também faleceu enquanto eu estava de plantão. Dez anos após ter sido diagnosticada com um câncer metastático, a doença finalmente levou o melhor dela; e a primeira vez em que ouvi que sua saúde estava declinando foi da sua enfermeira no hospice, apenas 3 semanas antes de seu falecimento. Eu nem mesmo sabia que ela estava num hospice naquela época. Ela não queria “preocupar seus meninos” com as más notícias. Tudo o que pude fazer foi colocá-la na melhor casa de saúde que foi possível na cidade. Muitas das pessoas que vieram ao seu funeral diziam coisas como: “Ah! Você é o filho médico! Sua mãe tinha tanto orgulho de você!” Junto com o orgulho da profissão vem a escassez de tempo com a família. É uma troca que temos que considerar.
É frequente ouvirmos que alguém “perdeu a batalha contra o câncer”. Eu não gosto dessas palavras, porque na maioria dos casos um paciente “perde” a batalha contra o câncer da mesma forma que um time de futebol poderia “perder” um jogo contra o Chicago Bears. Meus amigos e suas famílias não “perderam” nenhuma batalha. Eles viveram suas vidas até o final delas. Talvez a melhor coisa que eu poderia fazer pela minha família fosse me certificar do que eles realmente gostariam no final de suas vidas, para assim poder honrá-los seguindo fielmente suas decisões.
Refletindo a respeito de todas as vidas perdidas desde minha primeira entrevista para a faculdade, hoje eu sei o que o entrevistador queria dizer, mas não foi o sofrimento dos pacientes o que mais teve impacto sobre mim. Foi o sofrimento dos que ficaram, e não existe tratamento para isso. Para todos aqueles que têm médicos em suas famílias, nós nem sempre somos os membros mais atentos ou carinhosos na hora do luto. Nós apenas o vivenciamos de uma forma diferente.
(Fonte: kevinmd)
*Tradução equipe Fãs da Psicanálise.