Sentimentos negativos prejudicam, em primeira linha, a quem os sente
Às vezes, alguém nos faz algo de ruim (ou simplesmente algo que nós mesmos definimos como ruim, algo que a pessoa talvez tenha feito sem qualquer maldade, por insegurança, por ver as coisas diferentes, por ser do jeito que ela é e não do jeito que esperávamos que fosse…) e isso fica guardado em nós.
Ficamos magoados, feridos e, na pior das hipóteses, somos tomados pelo sentimento de rancor. Até aí, tudo bem, pois somos humanos e, assim, imperfeitos. Sentir rancor faz parte de nosso jeito de ser. Mas sentir rancor é bom? Claro que não!
Segundo o psicoterapeuta e escritor francês Christopher André 1), é perfeitamente normal sentir mágoa ou até mesmo rancor, já que essa é uma forma de expressar e uma chance de trabalhar nossa insatisfação, mas ele também diz que jamais devemos permitir que esses sentimentos fiquem guardados em nós por mais tempo que o necessário, já que eles não fazem mal à pessoa que é alvo do que sentimos, mas sim a nós mesmos, nos corroendo por dentro, nos desestabilizando e fazendo até que fiquemos doentes.
Outro problema é que o rancor que sentimos e incorporamos pode nos tornar solitários se não tivermos cuidado, pois pessoas rancorosas têm algo de desagradável que assusta e afasta os demais.
Os rancorosos espalham uma energia negativa e, não raramente, desenvolvem um desejo de vingança, que é inteiramente irracional e as fazem agir de forma igualmente irracional, “mordendo” aleatoriamente, prejudicando até mesmo terceiros, que nada tinham a ver com o conflito original (o que para mim é o aspecto mais grave de pessoas rancorosas), como o rancor da mãe pelo pai (ou vice-versa) que atinge os filhos, por exemplo.
A pessoa rancorosa se acha na razão (“foi o outro que começou!” ou “eu tenho o direito de estar com raiva!” ou “errou comigo, então não presta!”). Consequentemente, se ela está na razão, o outro está errado. O veredito é claro: o outro é culpado e quem é culpado tem de pagar. E o preço normalmente é seu desprezo/sua indiferença, mas às vezes também sua maldade, sua mesquinhez, suas estratégias criadas e remoídas para descontar um dia o mal (realmente ou supostamente) sofrido. O rancor alimenta seu desejo de vingança e ela aguarda por uma chance de “dar uma rasteira bem dada” na outra pessoa.
Pode até ser que um dia a pessoa rancorosa tenha realmente a chance de se vingar da outra pessoa e assim a faça sofrer. Mas também pode ser que não. De uma forma ou de outra, tanto faz se ela consiga descontar o mal sofrido ou não: a pessoa rancorosa sofrerá pelo menos tanto quanto a pessoa que é alvo de sua vingança, e normalmente ela até sofre bem mais, principalmente porque rancor guardado se transforma em ódio. E ódio destrói por dentro, em primeira linha, a quem o sente.
O perdão é apresentado por aí, principalmente em meios religiosos, como uma virtude de quem perdoa. De fato, é uma virtude, mas o perdão, se analisado mais profundamente, não é lá nada de muito altruísta. Quem perdoa é bom principalmente para si mesmo, pois se livra de um conflito e de uma carga negativa, coisas que, se não resolvidas, roubam energia e tempo de vida.
Sei que a palavra perdão é forte e nem quero dizer que a pessoa rancorosa precisa chegar ao ponto de perdoar quem lhe fez mal, mas toco no assunto perdão de propósito, para tentar mostrar que esquecer o mal que o outro lhe fez não é questão de ser bonzinho e muito menos bobo. É uma questão de inteligência e de respeito por si mesmo.
É bom ter cuidado com sentimentos negativos em geral. Com isso, não digo que devamos rejeitá-los ou ignorá-los, pelo contrário: devemos registrá-los e aceitá-los como parte de nós, seres imperfeitos que somos. Devemos permiti-los e observá-los, mas devemos também nos livrar novamente deles o mais rápido possível, ao invés de carregar conosco por dias, meses, anos, décadas ou uma vida inteira essas coisas que nos fazem mal e até nos matam aos pouquinhos por dentro.
Recordo-me da história dos três monges que caminhavam para um mosteiro distante e tinham de atravessar um rio. À margem do rio estava uma mulher, que também queria atravessar, mas tinha medo da correnteza.
Um dos monges dirigiu-se à mulher e lhe ofereceu ajuda, colocando-a no ombro e levando-a para o outro lado. Despediram-se dela e continuaram a caminhada, com os outros dois monges calados, todo o tempo de cara feia. Dois dias depois, pouco antes de chegarem ao destino, os dois monges continuavam de cara feia e o outro perguntou-lhes se havia algo de errado. Um deles respondeu:
“Sim, há! Você carregou aquela mulher, mesmo sabendo que somos monges, fizemos votos de castidade e devemos evitar tal tipo de contato físico. Você sabe que não podemos nos aproximar de mulheres e muito menos tocá-las. Você feriu nossas regras!”
O monge respondeu em tom sereno:
“Vocês têm razão! Eu quebrei uma regra e carreguei aquela mulher, que precisava de ajuda, por alguns minutos. Mas, e vocês? Vocês talvez não tenham reparado, mas estão carregando aquela mulher há dois dias.”
Essa história mostra bem o que quero dizer. Sentimentos negativos podem não ser bons, mas fazem parte de nós. Somos humanos e não somos perfeitos. É impossível ser sempre bonzinho e ter somente sentimentos nobres.
Portanto, sinta-os, mas não os carregue muito tempo consigo. Por mais dolorosa que seja uma experiência vivida, por mais forte que tenha sido uma decepção, tanto faz o quanto alguém lhe feriu, não se deixe tomar por sentimentos negativos. Livre-se de seus rancores sempre o mais rápido possível e você verá que a vida é bem mais leve e saudável sem eles.
1) Christopher André em „Les États d’âme“, 2009, Odile Jacob, Paris
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