Entrevista por Fernanda Ortega sobre o tema da Semana Mundial do Brincar “Para ter criatividade, resiliência e coragem é preciso brincar!”
Ricardo Ghelman – pesquisador, pediatra e médico da família, especialista em oncologia pediátrica e em medicina antroposófica – aborda, em entrevista para a Aliança pela Infância, o desenvolvimento da resiliência durante a infância e critica o modelo pedagógico predominante na educação básica atual.
Como você define resiliência?
Defino resiliência como uma capacidade de enfrentar criativamente a vida, especialmente situações de estresse. A questão é como a pessoa lida, no dia a dia, com os seus desafios. Uma pessoa bem compreensiva, que veja sentido no que está acontecendo, é alguém com maior resiliência, uma pessoa mimada pode se tornar pouco resiliente, por exemplo.
Qual é a importância de desenvolver a resiliência durante a infância?
Só se desenvolve a resiliência durante a infância, que, para mim, é o período de 0 até 21 anos de idade. Resiliência é uma construção até a vida adulta.
E como você caracteriza a infância?
Caracterizo a infância como três infâncias, cada uma é responsável por desenvolver uma das três áreas da psique humana. A primeira infância, de 0 a 7 anos, desenvolve a área motora, comportamental, de fantasia. A segunda infância, que vai dos 7 anos até a puberdade, é mais afetiva. É o período que se desenvolve a inteligência emocional, que é um dos aspectos fundamentais da resiliência. Durante a terceira infância, que corresponde à entrada no Ensino Médio até a faculdade, desenvolve-se absurdamente o lado cognitivo: a capacidade de compreensão.
Como é possível contribuir para o desenvolvimento da resiliência na criança?
Um dos aspectos da resiliência é a personalidade inata da criança. Tem criança que nasce com uma tendência a ser mais resiliente que outra. Isso não dá para educar, é uma pré-condição, não podemos fazer nada a respeito. A genética influencia a personalidade, mas a natureza da criança – que é o aspecto existencial do ser humano – transcende a genética. Essa natureza é a individualidade da criança. Defino esse aspecto existencial, espiritual ou da individualidade do ser humano, como aquilo que diferencia dois irmãos gêmeos univitelinos com a mesma genética. Sou um exemplo clássico, porque tenho um irmão gêmeo univitelino. É a mesma genética, mesmo pai, mesma mãe, mesma educação, mas são duas pessoas diferentes. Isso rompe completamente com a ideia de que o ser humano seria resultado apenas da genética e do meio ambiente. Há também uma outra personalidade, que é desenvolvida por influência ambiental. Essa é a personalidade educável, que tem a ver com cultura.
“Um adulto travado emocionalmente, pode ter certeza, teve dificuldades na segunda infância”
E o que é possível desenvolver durante a infância para que a pessoa se torne mais resiliente, independentemente de sua personalidade inata?
A resiliência envolve três inteligências: a inteligência comportamental – relacionada à força de vontade e à ação no mundo -, a inteligência emocional e a inteligência cognitiva – que tem a ver com QI, Quociente de Inteligência. É preciso passar por toda infância para desenvolver todas essas inteligências. A primeira inteligência, que tem a ver com a primeira infância – de 0 a 7 anos – dá capacidade de manuseio da vida: saber enfrentar situações e buscar ajuda. A inteligência emocional, ligada à segunda infância, dá significado e sentido às coisas. A terceira inteligência dá capacidade de compreender o mundo. São essas três inteligências que tornam as pessoas inteiramente resilientes.
As três infâncias desenvolvem as três inteligências, mas o lado cognitivo da criança pequena é muito pequeno se comparado o lado cognitivo de um rapaz de 15 anos de idade. O aspecto afetivo é muito forte aos 8, 9, 10 anos de idade, muito mais forte do que quando a criança tem 5 anos e depois quando ela tem 16. Então, um adulto travado emocionalmente, pode ter certeza, teve dificuldades na segunda infância.
Um adulto resiliente é uma pessoa bem formada nos três âmbitos de inteligência, nas três infâncias. Com isso, é possível enfrentar as situações da vida e não ficar mal. Ficar mal significa entrar em conflito por não saber lidar com recursos criativos, nem compreender as coisas, nem ter força de vontade. Essa pessoa fica estressada e adoece. Isso interfere na felicidade e na saúde.
“O grande canal dos professores é a arte, que é um caminho para os sentimentos”.
Que tipo de dificuldade durante a segunda infância tornaria uma pessoa travada?
A experiência de pais muito racionais que educam sem poder falar de sentimentos. O modelo mais tradicional de pais no mundo moderno ocidental é de pais muito inteligentes e sedentários, que, na primeira infância, não brincam com a criança e a deixam na realidade virtual, na televisão e no videogame. Na segunda infância, que é um período afetivo, eles têm dificuldade de falar de sentimentos e repreendem as crianças. Na terceira infância, eles querem explicar o mundo para as crianças, mas elas não são amigas deles. Então, um adulto travado pode ter tido pais que não sabem lidar com sentimentos.
Os professores podem ajudar a combater esse travamento?
O grande canal dos professores é a arte, que é um caminho para os sentimentos. A criança se expressa em pintura e em desenho, por exemplo. Uma criança com câncer não consegue falar sobre a morte, mas ela consegue fazer desenhos sobre a morte.
Isso acontece em todas as três infâncias que você citou mais cedo?
Em todas as infâncias, mas especialmente dos 5 anos e até a puberdade, que é a época que começa a desabrochar sentimentos de amor e ódio em relação ao mundo. O lado artístico aqui é fundamental. Na primeira infância, a arte é uma brincadeira, a criança pinta brincando. Aos 7 anos, a criança tem a parte motora desenvolvida de tal forma que pode aprender um instrumento musical. Nesse momento, a criança tem habilidade para expressar o que está pensando. Até sete anos, a criança não consegue fazer nenhum esporte ou arte direito, ela precisa ter experiências bem livres.
“Os nomes das coisas podem aparecer, mas o objetivo não é que a criança se torne uma nomeadora de coisas”.
O que é mais importante, na primeira infância (de 0 a 7 anos), para a criança desenvolver a resiliência, tendo em vista que durante essa etapa da vida ela desenvolve especialmente a motricidade a partir do brincar?
De 0 até 7 anos, a criança desenvolve principalmente os membros e a barriga. Ela come e dorme muito. As funções vegetativas são muito importantes. Quando a criança está acordada, a consciência dela não é racional. A pior coisa que os pais podem fazer nessa época é conceituar o mundo para a criança perguntando: “Filho, isso é um triângulo?”, “Filho, isso é cor vermelha?”, “Filho, o que é isso? É uma girafa?” Essa é a época da criança fantasiar. Os nomes das coisas podem aparecer, mas o objetivo não é que a criança se torne uma nomeadora de coisas. Isso quebra com a criatividade dela.
“É fundamental desenvolver a percepção na primeira infância.”
Qual o problema de nomear as coisas para as crianças nesse período da vida?
Imagina se toda vez que uma criança vê um ser humano ela diz: “isso é um ser humano”. Se isso acontece, ela nunca vai poder perceber a singularidade de um ser humano. A mesma coisa acontece com as borboletas. A criança precisa ver que uma borboleta não é igual a outra, porque tem um azul especial, por exemplo. Se a criança adere ao conceito “borboleta”, ela nunca vai distinguir uma borboleta da outra. O mundo dela vai virar pastel, ela vai chamar as coisas de leão, borboleta e casinha.
É fundamental desenvolver a percepção na primeira infância. Os sentidos são uma experiência que não tem a ver com conceitos. Pais muito classificatórios têm filhos muito classificatórios.
“Você quer entrar no mundo do seu filho ou quer que ele entre no seu mundo?”
Como não ser classificatório com a criança?
Você precisa entrar no mundo da criança. Por exemplo, uma criança de quatro anos pode, com a imaginação, entrar dentro de uma casinha de brinquedo e inventar uma história. Uma criança de 8 anos vai abrir a casinha no meio para ver do que é feita. Um adulto, para não ser classificatório, teria que entrar no mundo da fantasia, entrar na casinha também e inventar uma história. Quando um adulto está com uma criança pequena, ele tem que deixar de ser adulto e entrar no mundo da criança para poder dialogar.
A grande questão a se fazer para os pais é: “você quer entrar no mundo do seu filho ou quer que ele entre no seu mundo?”. Se a opção for a segunda, a criança vai virar um adultinho. Se você veste a camisa do seu filho, senta no chão, brinca junto e entra numa fantasia de horas e horas, ele fica muito mais feliz. O adultinho tem medo porque sabe tudo o que acontece acompanhando o noticiário do Jornal Nacional. Ele sabe dos perigos e fica antenadíssimo. Quando o pai entra no mundo da criança, ele rejuvenesce e fica mais feliz. Então, não classificar é sair do nosso mundo adulto, racional, pouco motor e pouco artista. Entender o desenvolvimento infantil é desacelerar um pouco e entrar no mundo da criança. É um desafio.
Existiria um passo a passo para os pais seguirem com seus filhos para que eles se tornem adultos resilientes?
Um adulto bem desenvolvido tem bastante capacidade criativa. Um adulto que teve, durante a infância, um impedimento de desenvolver seu lado criativo – que estudou, por exemplo, numa escola muito cognitivista e teve pais muito intelectuais -, não consegue brincar com a criança.
Não existe passo a passo, nem fórmulas, existe a compreensão do que deve ser desenvolvido durante a infância e do que o adulto deve ter para lidar com a infância. Se o adulto, por exemplo, tiver enorme dificuldade com matemática, ele vai lidar muito mal com o filho quando ele entrar no Ensino Médio: esse é o momento em que o filho entra no mundo da lógica, mas o pai não é lógico, não sabe ganhar dinheiro, só sabe criar. Então, esse pai brinca muito com o filho na primeira infância, mas, quando o filho virar mais racional, esse pai vai falar “filho, eu não te entendo”. Então, precisamos fugir das fórmulas.
Uma escola Waldorf privilegia muito o brincar e a arte, mas pode ter dificuldade de lidar com a racionalidade. Claro que isso depende da escola Waldorf. A maioria das escolas no Brasil são cognitivistas, bem conceituais. Nelas, a arte é apenas uma pincelada no currículo. Se os pais colocarem seus filhos nestas escolas, eles precisam se preocupar em desenvolver mais o lado artístico fora de sala de aula.
“A gente educa o que a gente é”.
Que trabalho é possível fazer com os pais para conscientiza-los sobre estas questões?
É importante perguntarmos para os pais: “você brinca?”, “Como está o convívio com os seus amigos?”, “Você só está focado em trabalho?”. Se os pais não tiverem amigos, eles não conseguem ensinar muito o filho a brincar, porque eles não brincam com ninguém.
Há esse lado motor, lúdico, de encontro pessoal, de saber conviver socialmente. Isso tudo é muito importante para os pais saberem conviver com o filho. Pais bem formados educam bem os seus filhos. A gente educa o que a gente é.
Para você, como seria uma educação escolar ideal para que a criança desenvolva a resiliência?
O ideal seria uma salada mista ou um suco misto dos modelos pedagógicos existentes para pegar o melhor de cada um. Não posso defender um métodos pedagógico, só posso dizer que o modelo cognitivista – que é o modelo das escolas tradicionais, baseadas em conceitos – leva à evasão escolar e a uma falta de vontade de aprender. Por que aprender o nome em latim de todos os dinossauros no século XXI? Isso significa sair da realidade e ir para um mundo pré-histórico em que nenhum homem viveu. Hoje, as pessoas querem saber um monte de coisas que não tem a ver com a realidade. Isso gera um grande distanciamento social.
É importante permitir que as crianças tenham experiências: ter contato com a natureza, observar o mundo e aprender por dedução. Há várias escolas que favorecem isso, como as escolas construtivistas, as escolas Waldorf, a escola da Ponte, entre outras. Esses são movimentos de contracultura ao cognitivismo.
“Só pensamos em mudar algo se estamos insatisfeitos”.
Como você acha que seria possível conscientizar o poder público, que em geral deixa a educação de base tão de lado, da importância de um modelo menos cognitivista, menos tradicional, e que trabalhe mais o brincar e a arte?
Um dos pontos fundamentais para influenciar o poder público é embasar essas questões tecnicamente a partir da neurociência. A neurociência mostra que o aprendizado não é só conceitual, o aprendizado envolve o corpo inteiro. A força de vontade – inclusive de aprender – está muito relacionada a neurotransmissores que estão no intestino e são estimulados muito na primeira infância (de 0 a 7 anos) por ritmos, movimentos e brincadeiras. Esse embasamento comprova que uma educação menos cognitivista não é uma ideia de hippies ou de um grupo louco. De outro lado, é importante fazer uma análise crítica do modelo atual. Só pensamos em mudar algo se estamos insatisfeitos.
“A proposta pedagógica não é que se tenha bom caráter, a proposta é formar uma pessoa inteligente para passar no vestibular”.
Qual a crítica que você faz ao modelo de educação atual?
O modelo atual é cognitivista. Quando um pai educa um filho, o que ele quer? Quer que se torne uma pessoa boa? Que tenha senso estético? Ou que seja inteligente? Ele quer que seu filho seja inteligente, esse é o valor da sociedade hoje. A proposta pedagógica não é que se tenha bom caráter, a proposta é formar uma pessoa inteligente para passar no vestibular.
Outro aspecto presente na escola tradicional é o de avaliar e comparar pessoas com notas. Existe a meta de se tornar um ótimo aluno. O modelo hoje forma pessoas inteligentes e competitivas. O que seria um jovem bem-sucedido aos 26 anos? Seria um empresário, ambicioso, que consegue fazer parte da sua formação nos Estados Unidos, mas que não necessariamente vai ter um bom relacionamento humano com as pessoas. Imagine se todo mundo quer se tornar o primeiro aluno da turma desde os sete anos de idade: é a guerra de todos contra todos. Então, temos que analisar qual é a consequência do ensino de hoje e pensar em modelos mais cooperativos e mais integradores. A escola precisa formar pessoas mais humanas.
Além disso, hoje em dia, muitas escolas pensam que o que é moderno é simplesmente colocar computadores para o alunos. Não sou contra o computador, ele pode ser uma ótima ferramenta de aprendizado, mas ele vem de um modelo que privilegia o lado cognitivo. Então, na mesma hora que se coloca o computador na escola, deveria ter aumento na carga horária de artes. O computador gera sedentarismo nas crianças. Tem estudos que mostram que crianças mais alérgicas têm tendência a piorar com falta atividades motoras e físicas. Então, esse modelo sedentarista muda, por exemplo, a constituição imunológica da criança e deixa a criança mais alérgica. As crianças alérgicas precisam suar.
Imagine que toda grade curricular escolar da infância fosse um cardápio de alimentação para tornar um adulto informado. O lado conceitual seria a carne e o lado artístico e motor seriam carboidratos, sementes, fibras e brotos. Hoje em dia, a alimentação básica escolar, fazendo um paralelo, privilegiaria a carne. A carne seria o prato principal e constituiria 70% da alimentação, sendo 30% perfumaria com poucas aulas de educação física e artes. Nessa grade curricular, os conceitos são privilegiados para que a criança chegue no Ensino Médio, passe no vestibular e, em seguida, esqueça tudo. Numa dieta ideal, quanto seria o ideal de carne? Seria 30% de carne, 70% deveria ser carboidrato e outros elementos com oleogenosas, que são gorduras com qualidade. Isso é a alimentação ideal. Existe uma inversão na alimentação e o mesmo acontece na educação escolar.
“Cada uma fica em sua casa assistindo televisão”.
Nesse contexto, qual é a importância de resgatar a importância do brincar?
Valorizo a política do brincar da Aliança pela Infância, por exemplo, porque o brincar é um antídoto contra o excesso de cognitivismo. Uma criança educada por pais muito intelectuais não sabe brincar. Eu vejo isso no consultório todos os dias. São crianças que não conseguem se desligar da conversa do pai com o médico e não conseguem entrar na brincadeira. Isso acontece porque a criança está em um ambiente alerta e intelectual. Estamos vivendo uma crise de infelicidade na infância. Uma criança que não consegue entrar nesse mundo da fantasia não é feliz. Ela é assustada e tem medo. É isso que a gente está formando hoje em dia.
Isso é supertriste. O que é modelo de uma criança feliz? É uma criança correndo, na natureza, rindo, com outras crianças junto, empinando uma pipa. Mas as crianças não têm um espaço público lúdico para brincar. Cada uma fica em sua casa assistindo televisão.
(Fonte: semanamundialdobrincar2015.wordpress.com)
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