As consultas do professor sempre são muito tranquilas. Já com certa idade, aposentado da faculdade, e com anos suficientes para lamentar menos e agradecer mais, ele vinha convivendo com um câncer de próstata já há algum tempo, sempre com boa evolução e sem que a doença chegasse a atrapalhar sua vida.
Na verdade, o câncer pouco participa das nossas conversas. Durante as consultas, dedicamos mais tempo a trocar impressões sobre o mundo, as pessoas, livros, a faculdade, ou qualquer outro assunto que venha a nos conectar. O câncer é um coadjuvante, quase como se não precisasse estar ali.
Foi justamente por vê-lo como alguém saudável, por raramente associá-lo à doença que habita seu corpo, que fiquei tão surpresa com nossa última conversa. Estávamos falando sobre os comportamentos das pessoas, sobre como palavras proferidas em momentos inoportunos podem causar dor e sofrimento. Foi no meio desse tema instigante que ele começou a me contar dos sentimentos conflitantes que o invadem quando escuta alguém usando a palavra “câncer” para classificar algo (ou alguém) como sendo o pior de tudo (ou de todos).
Contou que, ao ouvir que “Fulano é um câncer na sociedade” ou “Cicrano é um câncer na vida dela”, seu coração se aperta. É como se colocassem dentro dele o que há de mais maligno na humanidade e no mundo, como se seu corpo fosse covardemente invadido pela escuridão. O fato é que ele não sente sua doença como algo tão ruim assim. Ao ouvi-lo falar, fiquei pensando nessa relação incrível que o professor, aproveitando toda a sua sabedoria, desenvolveu com uma doença com a qual terá que conviver para o resto de sua vida.
Ele encara o câncer como uma parte dele que não deu muito certo, mas que ainda assim continua sendo parte do conjunto. Assim como uma mãe continua protegendo e amando um filho que comete erros (mesmo erros graves), ele mantinha uma relação de respeito, quase de “parceria”com a doença. A ponto de se sentir até um pouco ofendido ao ouvir alguém comparando sua doença a algo tão maligno ou cruel.
Num primeiro momento, ouvindo assim de relance, poderíamos pensar que o professor estava ficando um pouco demente. Talvez a idade já estivesse confundindo suas ideias, e ele tivesse perdido a capacidade de discernir o que é bom e o que é ruim, ou não fosse mais capaz de compreender que o câncer é uma condição com a qual devemos nos preocupar e até temer. Mas bastaria ouvi-lo mais alguns minutos para entender que seus sentimentos nada têm a ver com perda do juízo. Sua postura é uma expressão admirável, típica das pessoas resilientes, as quais, posso afirmar categoricamente, são justamente aquelas que conseguem lidar com o câncer da forma mais saudável possível.
A resiliência é a pedra angular para o enfrentamento de uma doença complexa como o câncer. Trata-se da capacidade de enxergar a doença de uma forma menos dramática, mais objetiva, e livre de ressentimentos do tipo “Mas por que isso foi acontecer justo comigo?”. A resiliência é uma ferramenta poderosa para lidar com a adversidade.
Depois que ele saiu, fiquei pensando na nossa conversa por um longo tempo. Pensei no enorme tempo em que passei na faculdade, durante a graduação e a residência médica, encontrando todos os dias com professores como ele, ouvindo tanto sobre tantos assuntos. As centenas de livros e informações técnicas, as avaliações intermináveis para garantir que estávamos aptos a exercer a Medicina, que dominávamos todas as informações essenciais para cuidar das pessoas e de suas doenças, mas aprendendo tão pouco sobre como cada um lida com os desafios da vida.
Fiquei me perguntando se haveria algo mais importante, na formação de um médico, do que entender como as pessoas enxergam suas doenças, e de que ferramentas dispõem para enfrentá-las. E olhando o ex-professor ali, expondo de forma tão sensata e tranquila o seu modo de lidar com tudo isso, só pude pensar no quanto todos somos professores uns dos outros, o tempo todo, em qualquer momento e lugar.
(Autora: Dra. Ana Lúcia Coradazzi)
(Fonte: nofinaldocorredor)
*Texto publicado com autorização da autora.
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