Não há pergunta mais comum e mais constrangedora do que esta. Ela tornou-se comum por que, por gerações a fio, acreditava-se que uma criança era um ser incompleto o suficiente para só ter uma identidade ao crescer, terminar os estudos e definir uma trajetória profissional.

Por trás desta pergunta, existe uma concepção de infância e de adultez que merecem ser desconstruídas com urgência, como tantas outros conceitos que “sempre foram ditos desta forma”. O que é habitual não necessariamente é bom, o que é dito pelos avós pode sim ser tóxico, e tê-los intoxicado, fazendo doer neles uma dor que talvez ainda não tivesse palavra, apenas sensação. É hora, é tempo, de colocar palavra nesta dor mal dita.

A criança é uma pessoa íntegra. Carrega um tipo de pensamento muito próprio – o pensamento mágico – que faz com que ela enxergue a vida daquela forma específica que comporta acreditar em contos de fadas, seres fantásticos e medos noturnos infundados para a verdade dos adultos.

A criança não precisa pensar no futuro, ela é uma sábia em viver o presente.

Preste atenção em como a criança mais perto de você consegue se concentrar num brinquedo simples, e enquanto aquela diversão lhe fizer sentido, ela estará apenas ali.

Nós, os adultos, somos aqueles que se perdem entre os labirintos do passado (culpa) e do futuro (preocupação).

Quando tentamos levar a criança para pensar o seu futuro, sem que isto seja uma necessidade dela, estamos retirando-a da sua vivência presente e, talvez, chamando-a para um “dever ser” que pode ser indigesto.

A necessidade de se entender com precisão o que será “quando crescer” é nossa, não delas. E quando ela se perguntar isto, será da sua forma, acomodando o sonho da astronomia ao da culinária, bem como o de desenvolver-se na arte de maquiar e tratar os cabelos de elfos.

Não é só a criança que pode ser vista como um ser com uma forma muito específica de pensar a vida. Um adulto jovem pode ser visto como alguém que pensa em acumular experiências, afetos, dinheiro e patrimônio. Um idoso é percebido como alguém que teme, se preocupa, se mobiliza ou se defende da proximidade da morte – e isto faz com que toda a sua percepção do tempo e das relações seja transformada. Um adolescente pode ser visto como uma efervescência de descobertas e um curioso por definir os fenômenos do mundo agora não pelo olhar dos pais, mas por sua própria maneira de descrever a vida.

Em todas as fases, em todos os ciclos, podemos construir uma forma de perceber o ser humano – e qualquer destas descrições será imperfeita, imprecisa, estereotipada. O exercício de existir é, em tantas formas, indizível. Cada pessoa fará as suas próprias perguntas enquanto os ponteiros do relógio insistem em passar, e o caminho para responder a elas também é pessoal e intransferível.

Podemos dizer, portanto, que qualquer fase da vida pode ter uma imagem típica, mas que se transforma com o tempo e não é capaz de representar a história de ninguém.

O mundo já pensou que adolescente é aborrescente, imagine! (esta frase contém ironia). O mundo já teve coragem de pensar que uma criança é um ser que não tem querer, que depende o tempo todo do olhar de um adulto para decidir o que fazer na vida, imagine isto também! (esta também tem ironia). Ainda bem que já vivemos num mundo em que estas ideias se transformaram, em benefício do direito de uma criança ser vista como uma pessoa que merece ser escutada, que tem lugar de fala e de ação no mundo (contém mais esperança que ironia, esta frase aqui).

Portanto, a criança não “será” apenas quando ela crescer. Ela já é. E é mil coisas.

Ela pode ser mãe sendo menino. Ela pode ser jogadora de futebol sendo menina. Ela pode ser unicórnia mágica da Amazônia, pode ser um dragão de três cabeças, pode ser até quem você acha que ela é. Uma criança pode ser tantas pessoas, mas tantas pessoas, que esta pergunta é inadequada em sua essência.

Fazê-la pensar em renunciar a tantas identidades temporárias que também fazem dela quem ela é, pode ser uma pergunta muito opressiva.

Qual a nossa dificuldade em sustentar a multiplicidade de versões de si das crianças à nossa volta? Por que queremos encaixotá-las, prepará-las para um futuro sombrio? Quem sabe este incômodo venha de nossas raivas ou tristezas por termos desistido de pedaços de nós, que ficaram abandonados pelo caminho? Quem sabe estamos fazendo com que elas se adaptem às nossas dores, ao invés de darmos as mãos ao convite que elas nos fazem para brincar, e assim voltar a ser um pouco como elas?

E além dela já ser, e já poder ser mil coisas diferentes, temporárias e simultâneas, a criança não é a única que precisa ser uma coisa só quando crescer. É possível viver muitas vidas em uma vida. É possível fazer da dor a porta de entrada para uma nova fase, escutar o incômodo como a notícia de um futuro que precisa ser reinventado.

Podemos sim, ser médica e cantora (conhece Júlia Rocha? Sim ou com certeza? Já viu que o sorriso contagiante daquela mulher está também na arte de fazer da música um remédio e da profissão de médica uma canção para a alma?). Podemos ser comerciantes e pintores, pensar na playlist de uma festa como DJ´s enquanto o celular nos avisa de uma reunião com um cliente do escritório de advocacia tributária.

Houve um tempo em que tínhamos que escolher uma profissão que fosse como os casamentos daquela mesma época, até que a morte os separasse. Hoje, além de podemos nos desquitar de uma atividade profissional numa separação amigável, também está posta a abertura para que sejamos poliamoristas com as profissões. Podemos amar, podemos casar e ser felizes com mais de um ofício simultâneo. As cartas da vida estão postas também desta forma hoje, o que não nos deixa menos angustiados – ter muito mais possibilidades pode ser ainda mais sofrido do que ter poucos caminhos para escolher. Mas uma coisa é certa: não precisamos mais ser uma coisa só quando crescermos. Porque, sendo muito honestos, não crescemos totalmente nunca. Somos tão mutantes o tempo todo, que podemos facilmente deixar de querer algo que sempre nos acalentou a alma.

Melhor pensar que temos o direito de construir uma biografia que não faça tantos compromissos com a eternidade.

Melhor pensar que podemos ousar a qualquer hora, e fazer da passagem dos anos um recomeço, mesmo que o mundo diga que não é possível, legítimo ou próprio para aquela idade. Melhor pensar que não queremos “ser” nada quando crescermos. Melhor pensar que queremos “estar”. Melhor aprender logo com as crianças, enquanto ainda sentimos que há tempo de voltar a brincar de viver.

(Fonte: lunetas.com.br)
(Autor: Alexandre Coimbra Amaral)

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A busca da homeostase através da psicanálise e suas respostas através do amor ao próximo.

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