A saudade do ex

Nada mais natural, durante uma situação-limite (a pandemia é global, os prognósticos não são otimistas, você não sai de casa tem 4 dias e não lembra mais como é a sensação de usar calças) do que o instinto humano de buscar conforto no familiar, no conhecido.

Como seu amigo que com um acervo de 15 mil séries inéditas na Netflix fica pedindo pra adicionarem Friends, como sua afilhada que tem 200 livrinhos mas quer sempre ler o mesmo da Mulher-Maravilha, o seu momento de ansiedade afetiva acaba te fazendo pensar em alguma figura já conhecida, já familiar, que te faz lembrar momentos mais tranquilos, mais gostosos, com mais tranquilidade na compra de papel higiênico e menos preocupação com a saúde das suas avós. Sim, você tá pensando em mandar uma mensagem para a sua ex.

Afinal, o que foi mesmo que deu errado? Como foi que algo tão bonito acabou? Por que duas pessoas que um dia já disseram uma para a outra “eu te amo”, hoje não conseguem nem mesmo dizer “oi, você tá bem?”. Essas, para a sua mente carente, solitária e tão desesperada por contato humano que fez carinho na televisão quando a Ilze Scamparini entrou ao vivo na Globo News, parecem questões sensatas e pertinentes? Talvez sim, mas neste momento cabe largar o celular por alguns instantes e, enquanto lava suas mãos mais uma vez, tirar 20 segundos para pensar.

Primeiro sobre o fato de que você querer falar com alguém não garante que a pessoa queira falar com você. Afinal, se pra você o sorriso dela na video-chamada seria uma ilha de paz numa semana de caos, talvez para ela uma simples mensagem sua no celular seja o equivalente emocional a ser lambida por toda a tripulação daquele cruzeiro ancorado no Japão com 700 pessoas contaminadas pelo corona.

Depois porque, mesmo que a carência não te deixe lembrar, tudo que acaba tem alguma razão, já que poucos casais com relacionamentos extremamente satisfatórios apenas acordam um dia e dizem “ow, vamos terminar aqui rapidão pra testar um negócio?”, então é complicado acreditar que algo que não deu certo quando não existia limite de sabonete por pessoa no mercado vá dar certo agora. Mais do que uma esperança genuína de retorno ou uma preocupação real com a situação dela, não é a sua carência e o seu desejo por um fiapo de normalidade que estão te fazendo mandar essa mensagem?

Enquanto pensa nisso, lava a mão mais uma vez, vai. E cuidado ali, entre os dedos.

O cheque emocional sem fundos

Você está sozinho. Você está solitário. Você está carente. Grupo de Whatsapp da família aquece o coração mas tu queria era beijar na boca. Video-chamada com os amigos ameniza o desespero mas tu queria era apertar alguém contra a parede. O videogame reduz a tensão mas você não pode morder a bunda do Playstation, ainda que talvez, mais pra frente na quarentena, nunca se sabe, a natureza humana é misteriosa. A sua trajetória no PornHub já beirou o bizarro, deu duas voltas e no presente momento sua busca mais recente é “pretty girl hugging gently”. Ontem você riu bastante do vídeo do ex-Malhação Serginho Hodjakoff desesperado passando o Whatsapp pra qualquer mulher disposta a ir na casa dele. Hoje você já tá rindo bem menos.

E aí acontece. Pode ser aquele match no Tinder, aquele contatinho com o qual você tinha perdido o contato, um flerte que começou no Instagram após você curtir o comentário dela xingando o Bolsonaro numa postagem da Folha, pode ser a “Lei de Ciro Gomes” em ação te fazendo dar oportunidade pra pessoas que você sempre considerou meio esquisitas ou apenas nunca tinha reparado com atenção porque estava ocupado com outras coisas como poder transitar nas ruas ou não precisar besuntar todo o corpo em álcool gel.

Obviamente é avassalador. Duas pessoas ociosas e carentes, com tempo livre demais e cancelas afetivas de menos, uma fazendo companhia pra outra durante o que parecem ser os primeiros vinte minutos de um filme lançado direto em streaming onde o Nicolas Cage precisa agredir russos para obter um frasco de remédio. Vocês trocam confidências, fazem planos, prometem viagens. Não importa se vocês se conhecem — virtualmente — tem só dois dias, não importa se antes da pandemia você nunca tinha reparado em como ele é bonito, não tem nada a ver o fato de que ontem você já estava considerando fazer um fantoche de meia e cantar suas músicas favoritas pra ele.

Só que um dia a pandemia acaba, dizem. As pessoas ficam livres pra sair na rua, as opções de entretenimento aumentam, um abraço deixa de ser categorizado como tentativa de homicídio doloso e você nota que talvez você tenha passado um cheque emocional que o banco do seu coração não vai conseguir compensar.

Agora que você está conversando com outras pessoas ela não parece tão interessante, agora que você vê homem toda hora na rua ele não parece tão bonito, agora que você não está mais em privação sensorial a ideia de viajar pra Aruba com uma pessoa que você nunca viu pessoalmente começa a soar um pouco precipitada. Enquanto isso o celular vibra, você vai olhar. É um link do TripAdvisor e ele já achou um hotelzinho show de bola pra vocês ficarem.

(Fonte: updateordie)

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