Li há alguns dias um texto falando do filósofo Josiah Royce, da Universidade de Harvard, no qual ele descreve o que chamou de “Filosofia da Lealdade”.
Royce queria entender por que o simples fato de existirmos (termos um lugar para comer, e estarmos vivos e seguros) simplesmente não nos basta.
Por que é que ter acesso às necessidades básicas nos parece tão pouco, tão sem sentido?
Royce acreditava que estamos todos em busca de fazer parte de algo maior. Todos ansiamos por fazer parte de algo que seja maior que nós mesmos, que nos faça sentir que fizemos a diferença no mundo de alguma forma. Para ele, essa é uma necessidade humana tão básica quanto comer ou dormir.
Precisamos ter um motivo válido para viver: uma causa digna dos nossos sacrifícios e sofrimentos. Essa causa pode ser imensa, como atuar em projetos que façam deste mundo um lugar melhor, mas também pode ser pequena, como oferecer cuidado a um membro da família, ou mesmo a um animal de estimação.
O importante é que, atribuindo valor à causa, damos sentido às nossas vidas.
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Royce chamou essa dedicação a uma causa além de nós mesmos de lealdade. Ela seria exatamente o oposto do individualismo.
Os individualistas atuam de forma que todos os seus atos lhe tragam algum benefício, seja material, emocional ou de qualquer outra natureza.
Para um individualista, não faz sentido se sacrificar pelo benefício de qualquer outra pessoa que não seja ele próprio.
Para quem pratica a lealdade, o que não faz sentido é não ser útil a algo ou alguém.
A lealdade defendida por Royce é algo tão necessário para uma vida significativa que, sem ela, a morte se torna algo absolutamente sem sentido e, portanto, aterrador.
Seres humanos PRECISAM de lealdade. Ela não produz, necessariamente, a felicidade, e pode até mesmo ser dolorosa, mas todos precisamos de algo a que nos dedicar além de nós mesmos para que nossas vidas sejam suportáveis.
Sem isso, nos tornamos seres movidos por desejos cada vez mais insaciáveis, que acabam se tornando verdadeiros tormentos.
O próprio Dalai Lama defende a ideia de que a compaixão é a ferramenta mais poderosa de que dispomos para nos tornarmos seres felizes.
Colocar-se a serviço do outro, seja quem (ou o que) for, nos dignifica e dá sentido ao nosso sofrimento.
A própria morte deixa de nos apavorar. A única forma de enxergarmos sentido em nossa finitude é nos sentindo parte de algo muito maior que nós mesmos: uma família, uma comunidade, uma sociedade.
Nossas prioridades se deslocam do nosso próprio umbigo e passam a se direcionar para o outro. Conforme nosso tempo vai se encurtando, buscamos prazer em coisas mais relacionadas ao “ser” do que ao “ter”: o companheirismo, a cumplicidade, o carinho, a afeição, o conforto.
Passamos a nos sentir menos ambiciosos e a nos preocupar mais com nosso legado: “afinal, o que vou deixar para trás que faça com que minha vida tenha valido a pena?”
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É esse estado de amorosidade e de generosidade que vemos brotar todos os dias entre pacientes com doenças incuráveis ou terminais.
São pessoas que buscam, conscientemente, dar sentido às suas vidas antes que elas terminem.
Seus olhos passam a perceber o mundo de outra maneira, e elas se sentem extremamente propensas a compartilhar sua nova visão.
Nós médicos, tão próximos dessas pessoas, temos em nossas mãos (e em nossos ouvidos) a chance valiosa de aprender o que realmente vale a pena na vida. Mais que isso, temos o dever de ajudar essas pessoas a ressignificarem suas existências, permitindo que possam usufruir do que julgarem mais importante.
O problema, aqui, é nossa total falta de preparo para isso. Somos treinados para estabelecer rotinas, determinar quais as atitudes corretas (e seguras) e definir como a vida das pessoas deve ser durante seu processo de adoecer.
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Impedimos as pessoas de terem contato com seus animais de estimação, fazemos com que evitem viajar, não permitimos que comam alimentos que adoram, determinamos seus horários e definimos que lugares podem ou não frequentar.
Decretamos que as pessoas não possam mais morar sozinhas e até mesmo que tipo de sapatos elas devem usar. Nada mais inadequado, em especial quando estamos falando de doenças incuráveis. O significado da vida, por incrível que pareça, pode estar no olhar do seu cachorro.
Não falo aqui sobre uma revolução na qual diabéticos graves devam comer potes de sorvete, ou idosos que não consigam sequer comer sozinhos devam ser deixados em suas casas para se virarem como puderem. Falo, isso sim, de bom senso e sensibilidade. De questionarmos se as condutas que aprendemos na faculdade são realmente benéficas para aquela pessoa, naquele momento específico da sua vida.
Falo, principalmente, do direito que as pessoas têm de fazer más escolhas.
Médicos não são donos da vida alheia. Nossa função é orientar e apoiar, muito mais do que exigir e obrigar.
Quanto mais grave a doença, quanto menor o tempo de vida que resta a alguém, maior deveria ser sua autonomia. Quanto mais perto do final, maior a necessidade de que tenhamos ao nosso lado um médico cujo papel principal é de conselheiro, e não de cientista.
E é assim, ao lado de um médico que compreenda o que para nós é sagrado, que conseguimos aplicar a filosofia da lealdade de Royce em nossas vidas, tornando-as valiosas e cheias de significado, para que possamos terminar nossos dias sem medo, e em paz.
(Autora: Ana Lucia Coradazzi – oncologista clínica)
(Fonte: nofinaldocorredor.com )
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