O desejo é, com frequência, um poço de superfície conhecida mas de fundo ignorado. É justo afirmar que para certos desejos temos a clareza acerca do que nos move, ou seja, as razões enraizadas que levam ao seu florescimento. Para muitíssimos outros, contudo… Não é de hoje que se tem conhecimento sobre desejos inconscientes a nos mover, causando o assombro típico de quem desconhece a autoria da música que toca e embala muitos dos próprios comportamentos.
É possível nomear com a expressão ‘desejo cego’ tais manifestações que nascem sem o sabermos devidamente, sem termos refletido o suficiente a respeito das profundezas mentais que abrigam a imensa fábrica de desejos ocultos, em um velho e obscuro sistema que opera obstinadamente em turnos na calada da noite psíquica. Em suma, conhecemo-nos ao palco pessoal, ignorando consideravelmente os bastidores. ‘Sei que nada sei desejar’: quase um provérbio socrático!
Quantos desejos tivemos e posteriormente nos arrependemos, tendo-os concretizado ou não? E, neste último caso, foi a sorte, certas vezes, pois as consequências poderiam ser as mais dramáticas e caras. Ah! foi num momento de raiva, alega-se, impensado! Claro que sim, mas tanto pior, pois as emoções impõem-se superiores à razão para além da despercebida total falta de controle sobre os plantios destemperados que antecedem inconsequentes, inevitáveis e pesarosas colheitas… (Via de regra não reconhecemos o fruto amargo da árvore que plantamos, negamo-lo com veemência sob a frondosa sombra do autoengano.)
Então, pergunta-se, é de nossa responsabilidade repensar e tentar compreender melhor o que se passa dentro das nossas cabeças, ao invés de acreditar fantasiosamente que já possuímos um bom nível de controle?
Podemos nos remeter às questões essenciais como: eu sei querer com clareza? Com adequada dose de consciência? Meus desejos podem se perder num enorme campo se eu não cuidar deles, não for persistente, abandonando-os à sorte? Eles são exatamente o que quero ver frutificar amanhã ou desejarei (de novo) tê-los diferentes por perceber o equívoco no
plantio de ontem? Acaso eu sei o que não quero desejar para evitar arrependimentos demasiado árduos? Percebe a importância da questão? A nossa cautela, pois, deve alcançar as duas situações: (a) saber o que se quer desejar e (b) saber o que não se quer desejar. Para tanto, é fundamental pensar antes. Pensar é a chance de minimizar os erros que ocorrem por sua natureza intimamente ligada à aprendizagem, uma exigência do currículo evolutivo inscrito no DNA. Minimizar, o que é bem melhor para todo o projeto. Menos frustração e penalizações decorrentes, e mais estímulo coordenado à percepção do crescimento e do equilíbrio que alivia os altos e baixos naturais da existência.
Mais: será que os nossos desejos são mesmo nossos? Ou talvez desejemos o que vemos nos outros? Ilusão? Desejamos os sonhos das propagandas e das histórias que nos chegam ou temos bem definido o que queremos? Aqui é preciso olhar com profundidade dentro de si, pois os desejos podem se confundir ilusoriamente com os conceitos de sucesso e felicidade, generalizando, infeliz e erroneamente, aquilo que só pode ser particular, único.
Antigos pensadores e escritores já percorreram os degraus que dão acesso ao subterrâneo da psicologia humana, e de lá retornaram com pitorescas e valiosas interpretações, a exemplo do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850), com a sua obra ‘A pele de onagro’, uma espécie de objeto mágico que permitiu ao jovem Rafael realizar os seus desejos ao exorbitante preço do encolhimento daquele couro e da sua vida também, sem perceber inicialmente que se iludiu no emaranhado dos sonhos de riqueza e triunfo com a exuberante, porém fria Fedora, passível de abreviação (caso enxergasse) à simplicidade do profundo amor com o qual convivia diariamente junto à delicada Pauline, uma descoberta dramaticamente tardia.
Ou no bem humorado filme ‘Endiabrado’, cujo pacto diabólico permitiu a realização dos desejos mal elaborados (eis a graça e a reflexão do conteúdo), de Elliot Richards — interpretado por Brendan Fraser — levando-o a tropeçar na imprudente perna do desejo de glória e de atenção, cada uma delas seguida cegamente apenas pelas insinuações do seu objeto de amor, a charmosa Alison Gardner (Francis Ann O’Connor).
Cada um é responsável por encontrar os seus próprios desejos a fim de avançar à estrada das realizações, sejam elas simples ou complexas. Sem perceber, tomamos caronas em direções que não nos dizem respeito e nos levam a pontos que frustram e desanimam. Conciliar autenticidade e contentamento é difícil, mas vale o seu preço. Mesmo que desejemos coisas semelhantes a outras pessoas, se assim resultar das nossas reflexões, temos como vantagem a ponderação e não o impulso cego, o olhar da vontade clara e não o desejo cego.
Ainda: será que as repetidas frustrações sucedidas aos plantios de desejo cego não nos levam à desesperança, impedindo-nos de prosseguir em condições mais adequadas, mais justas e consequentemente mais recompensadoras? Deixamos de desejar o tanto a que temos pleno direito? Há limites para os desejos? O desejo é um extraordinário poder pobremente empregado em boa parte do tempo, ainda envolto no misterioso véu do desconhecimento; é muito reduzido a pouco. Ah! se soubéssemos com ideal propriedade: o verdadeiro desejo é a metade do caminho a ser percorrido!
Mas, e se o desejo melhor direcionado e bem cuidado nos oferecer um futuro mais interessante? E quando se diz futuro, é bom ter em conta que há colheitas de médio e longo prazos, mas também as surpresas de curto tempo… A natureza do desejo demonstra ser majestosamente digna em suas respostas, tanto que se desejamos (e cuidamos) ‘X’, normalmente o alcançamos, mas de nada adianta se queixar do ‘Y’ colhido, justificando-se pelo erro da desatenção ou do impulso despercebido na hora do plantio.
Afinal, você sabe desejar?
Autor: Armando Correa de Siqueira Neto