Saúde

Desabafo de uma bulímica

Eu sempre fui uma pessoa equilibrada, pelo menos era o que eu pensava. Durante minha adolescência o que me chamava atenção era o politicamente correto. Aluna nota 10, colecionava medalhas. Eu era a responsável da casa e a consciência dos meus pais, que tantas vezes me estimularam a largar um pouco os cadernos e me divertir. Mas eu, cada vez mais acumulava preocupações em minha mente.

Madura, centrada, sempre soube o que queria, até começar a namorar, ou melhor, me iludir. Uma pausa aqui. Não me perdi no mundo, continuava a mesma garota chata (exemplar), só um pouco menos focada. Mesmo com o coração doendo não fazia nada capaz de me envergonhar, tirando alguns momentos de bebedeiras e barracos compulsórios movidos a dor de corno e tequila. Tudo a beira da normalidade adolescente.

Então é preciso perguntar, quando a bulimia começou? E é constrangedoramente que respondo – pós 30.

Nunca fui gorda ou anoréxica. Havia apenas uma neurose básica com o tamanho da minha barriga. Eu a media com as mãos e se essa medida mudasse me recusava a comer mais até que diminuísse. Eu não saía de casa, ou se necessário jogava um blusão bem largo por cima para que ninguém percebesse. Funcionava, eu tinha meu próprio sistema.

Quando havia festa ou algum encontro especial, passava o dia todo sem comer para a noite estar perfeita. Só me alimentava após esses momentos e então precisava comer muito para não secar no outro dia. Pois é, emagrecia muito fácil e perder bunda e coxa também estava fora dos planos. Foi assim até a fase adulta, foi assim até os 30, foi assim até conhecer esse cara.

Esse cara foi uma paixão. Nada tão diferente das outras em relação ao sistema. O problema é que um dia ele burlou minhas regras. Combinamos de ir a uma festa de amigos, mas ele adoeceu e cancelou. Tudo bem, faz parte, mas com a mudança de planos me senti liberada para comer. E eu comi… tudo o que tinha dentro de casa. Pão, biscoito, o resto do almoço, uma panela de brigadeiros saída do forno e muita Coca-Cola.

Foi no momento que eu estava deitada na cama contemplando minha circunferência abdominal, que recebi uma mensagem dele, dizendo que estava a caminho da minha casa, ele queria me ver, mesmo sem poder ir a festa. Morri, ou melhor, eu quis morrer, como deixaria ele, que me considerava a mais linda, gostosa, fenomenal, me ver com aquela pança? Em início de romance não podemos perder a pose e não queria tirar essa imagem tão massa que ele tinha de mim.

Liguei para uma amiga desesperada pedindo ajuda para uma desculpa que pudesse dispensá-lo. Quando ela disse: enfia o dedo na goela e coloca tudo para fora.

Leia Mais: Anorexia Nervosa; uma doença cultural?

Sempre tive pavor de vomitar, mas situações extremas pedem medidas extremas. Apenas questionei: funciona? Ao que ela respondeu: instantaneamente. Então corri para o banheiro. Enfiei o dedo na garganta, e após alguns espasmos assisti toda a minha gulodice explodir no vaso. Meu Deus, que nojo. E como num passe de mágica minha barriga secou.

Recebi meu amor, de braços abertos e barriga murcha. Mal sabia o que me esperava.

Vomitar não se tornou um hábito logo de cara. Eu só fazia isso quando extremamente necessário. Eu sabia que não era bulímica por vomitar após cometer alguns excessos com comida. Eu não via nada de errado nisso, era tão fácil e de vez em quando não seria problema. O problema começou quando virou de vez em sempre.

Certo dia, tive um pensamento macabro e totalmente pecaminoso. Pensei em comer a vontade, sem me preocupar em engordar porque depois era só colocar tudo para fora. Era um novo sistema e bem mais eficaz, eu pensava. Então, passei a comer mais, comer tudo o que queria, e vomitar depois. E fiquei compulsiva, comia o que via pela frente, e mesmo vomitando, acabava engordando.

Leia Mais: Eu e a anorexia

Afinal, bulimia não emagrece. Sempre soube disso, desde os primórdios das aulas e orientações sobre isso no ensino fundamental. Mas e quem disse que eu queria me lembrar? Nunca imaginei que depois de adulta, madura, independente eu não teria noção do que estava fazendo com a minha vida. Eu já me encontrava neste ponto, psicologicamente abalada, destruindo minha saúde. Mas só comecei a ter consciência disso quando senti meu estômago doer e meus dentes corroerem.

Passei a sentir uma dor insuportável ao vomitar e tudo que colocava para dentro eu queria tirar. Eu sempre repetia que era a última vez, mas essa nunca chegava. Se antes eu contava para todo mundo e via como brincadeira, uma vez que já era adulta e sabia o que estava fazendo, passei a esconder e me envergonhar por tal ato.

Eu chorava quando vomitava, mas era tão difícil admitir que eu estava com problemas. Eu era uma bulímica compulsiva. Quem diria a esta altura da vida ter que esperar vaga na ala psiquiátrica, tive que fazer isso pela minha mãe.

Ganhei remedinhos que prometiam me ajudar, não ajudaram. Aumentaram as doses, comecei a fazer terapia, mas minha vontade de comer não passava. Guardava em segredo o desperdício que fazia, gastando dinheiro com lanches caros, doces finos, que iam parar no lixo.

Eu gastava o que eu não tinha mesmo sabendo que ia jogar fora, apenas pela chance de saborear. E tudo isso era inútil mediante o ciclo sem fim. Você come, vomita, e sente fome novamente. Só tentava não vomitar mais por causa da dor que sentia, visto que a essa altura eu já estava com uma lesão enorme no esôfago. Mesmo assim, ainda o fazia. Sentia-me fraca, suja, indisposta, gorda, faminta e finalmente me enxerguei doente.

A comida para mim era uma droga e a bulimia a moeda que me permitia consumir mais e mais. Você só pode se reabilitar quando aceita que está verdadeiramente precisando de ajuda. Antes disso, não há remédio, psiquiatra, psicólogo, parente, amigo, que te faça sair dessa. É preciso trabalhar sua mente fodida, para depois chegar ao seu corpo e entender o problema junto com as conseqüências dele. É preciso fé, em Deus, Alá, Gokum, Nyx, qualquer coisa, mas principalmente em você mesma.

É preciso humildade para segurar a mão de quem a estende a você. É preciso toda ajuda possível para recuperar a auto estima e amor próprio. É preciso enfrentar aos outros, enfrentar a si. É preciso força e coragem para lutar. É preciso abrir os olhos e enxergar a vida da forma mais neutra e verdadeira que ela se mostra, entregando em suas mãos o seu próprio destino.

Estou escrevendo isso para ajudar você, que tem bulimia, a sair dessa. Mostrar que este não é o caminho. Que não deve odiar o seu corpo e matá-lo dessa forma. Espero que eu consiga.

Mia Coutinho

Publicitária por formação, aeromoça por opção e escritora por paixão. Virginiana, perfeccionista, mãe do Henri. Entre fraldas e mamadeiras, entre pousos e decolagens, entre artes e artimanhas, ela escreve. Escreve porque para ela, escrever é como respirar: indispensável à vida! É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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