Pare um instante e contemple nosso paradigma econômico. A cooperação, outrora regra nas sociedades primitivas, tem sido esmagada num mundo onde a competição reina absoluta. Mais pra você é menos pra mim. Preciso “demarcar meu território” e garantir meus interesses.
Até o próprio sistema educacional se baseia na competição, neste caso, por notas, implicitamente associadas ao sucesso na vida — à sobrevivência. Ontologia e economia nos colocam em competição uns contra os outros e, assim, geram ansiedade.
Podemos perceber o quanto somos dominados pela ansiedade se considerarmos individualmente cada atitude, examinando as emoções e os motivos que determinam nossas escolhas mais importantes e que moldam diretamente nosso destino.
As pessoas buscam um diploma universitário por diferentes motivos: (a) “quero fazer um bom curso pra ter um bom emprego”, (b) “porque é o que meus pais esperam de mim e não quero desapontá-los”, (c) “sei lá, a faculdade vem depois do ensino médio”, (d) “pra matar minha curiosidade e sede por conhecimento”.
Pergunta: qual das alternativas melhor reflete a nossa realidade? A resposta é óbvi(a). Em outras palavras, a maioria dos estudantes só ingressam na universidade porque sentem uma certa obrigação. Obrigação de entrar na melhor universidade possível, o que significa um bom emprego, o que significa mais dinheiro, que precisam pra obter, no mínimo, o básico: comida, casa e roupas.
O desejo em se tornar universitário vem, muitas vezes, da ansiedade em sobreviver. Se tornam universitários porque “não podem se dar ao luxo” de fazer outra coisa, não seria sensato, acabaria atrapalhando de algum modo suas chances de alcançar a tão sonhada estabilidade financeira.
Ao associar, culturalmente, dinheiro à sobrevivência, a expressão “não posso me dar ao luxo” assume um sentido de “bancar” ou “financiar”, e acaba nos revelando a extensão dessa ansiedade pela sobrevivência já implícita até em nossas pequenas decisões.
“Não posso me dar ao luxo” não se aplica somente ao contexto de compra, mas sugere a monetização de toda a vida. À medida em que a esfera das atividades monetizadas cresce, também cresce a difusão de uma ansiedade decorrente da escassez de um sistema econômico que, por sua vez, só induz à competição.
Tomar decisões apoiadas no que podemos “bancar” é assumir uma situação de escassez. Infelizmente, as mecânicas de uma moeda sustentada por juros só fazem garantir, por diversos meios, que nunca teremos o bastante.
Projetamos nossa ansiedade até na biologia, ao enxergá-la como uma competição impulsionada pela sobrevivência e reprodução. A programação genética de qualquer organismo visa, entre outras coisas, anular as ameaças a sua sobrevivência.
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Se um gene não age dessa forma, acaba sendo excluído do genoma — simples assim. A ansiedade, assim como o medo, parece desempenhar muito bem o seu papel nessa programação. Dessa forma, o progresso tecnológico pode ser encarado como a expressão de um impulso Darwiniano pela sobrevivência.
A biologia, ao acompanhar a economia, presume que agentes individuais e distintos (genes) trabalham para maximizar seus próprios interesses: sobreviver e reproduzir. Nossa própria concepção de vida (biologia) e, em particular, seu progresso (evolução), baseiam-se na competição pela sobrevivência. Portanto, não é estranho perceber que encaramos a vida e o progresso humano da mesma forma — como competição. A ansiedade, que define muito da vida moderna, está implícita em nossa própria concepção do que é ser vivo, do que é ser humano.
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Essa visão de que a vida é uma luta pela sobrevivência — reflexo da forma como enxergamos o mundo — vai além do Darwinismo. Na verdade, nossos paradigmas científicos nem admitem outra alternativa. A competição está culturalmente implícita em nossa própria concepção de “si mesmo” como entidade independente, distinta e separada do ambiente e de outros seres.
Essa concepção chegou ao ápice com Descartes, ao identificar o Eu como um ponto discreto de percepção consciente, uma alma separada da realidade material; acompanhado também por Francis Bacon, ao lançar o ideal da objetividade na ciência, culminando na independência entre observador e experimento.
Os próprios fundamentos da ciência implicam em separação. Quando definimos o Eu — e, de forma geral, um organismo — como algo individual e distinto, qualquer interdependência torna-se condicionada às circunstâncias, e pode, em princípio, ser eliminada. Chamamos isso de “independência” ou “segurança”, ou seja, não depender dos outros. A consequência é clara: seres são postos em competição uns contra os outros, pois mais pra mim é menos pra você.
Outro importante aspecto do Darwinismo, que vai de acordo com a ideologia científica, é a falta de propósito (ou aleatoriedade) que abrange uma outra fonte de ansiedade. O Darwinismo representa uma brava tentativa de reconciliar a ordem e a espontaneidade com a mecânica e as leis determinísticas — a vida sob os moldes da física clássica.
Nas palavras de um dos expoentes mais eloquentes do Darwinismo, Richard Dawkins, “O universo que observamos tem precisamente as propriedades que esperaríamos caso fosse, em essência, aleatório, sem propósito, sem bem nem mal: nada senão uma cega e impiedosa indiferença.”
A compreensão clássica do universo, no qual todas as coisas são compostas por átomos e vazios, dá origem a um outro nível de ansiedade, algo que talvez você tenha sentido ao ler a citação acima, de Dawkins. Eis a “ansiedade do homem moderno”, proveniente da compreensão de que também somos compostos, assim como qualquer outro objeto no universo, por átomos e vazios.
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Sob esse ser arbitrariamente único e discreto — e “real”, tal como o consideramos — se esconde uma espécie de pânico existencial, uma suspeita de que, no sentido mais fundamental possível, nós nem mesmo existimos. É nele que também se esconde a alienação do espírito humano, resultado da frieza, do determinismo e da indiferença das leis da física. Há uma sensação de que, por mais complexas que sejam as nossas teorias, continuamos omitindo algo essencial.
Freud é frequentemente citado ao afirmar: “O objetivo da psicanálise é transformar o sofrimento histérico numa infelicidade comum.” Na verdade, essa citação é mal interpretada e fora de contexto, mas seu forte apelo nos sugere a impossibilidade de se encontrar a felicidade através da nossa atual percepção do mundo. Podemos até nos distrair do sofrimento, oriundo da falta de propósito, do vazio e da ausência de sentido, mas ele continuará sempre lá, esperando.
Ansiedade e tédio surgem da intersecção dos mesmos fenômenos: da tecnologia que nos separou, uns dos outros, da natureza e de nós mesmos; da definição de um Eu como entidade discreta, fundamentalmente separada de outros seres e do ambiente, reforçando nossa solidão psicológica; do paradigma de um mundo competitivo, já inseparável do patrimônio científico, entrelaçando a ansiedade na própria trama da vida que, por sua vez, se tornou uma competição pela sobrevivência; e, finalmente, da crença de que o universo se resume a uma interação de partículas atômicas sob ação de forças impessoais, criando uma insegurança existencial, uma alienação de um mundo vivo e espiritualizado, uma descrença em algo maior e melhor — algo que, intuitivamente, até os céticos podem sentir.
Nossa sociedade é, em grande parte, baseada na competição e na ansiedade, pois ambas estão implícitas em nossa compreensão básica do universo. Moldar um novo paradigma — e, coletivamente, uma nova sociedade — que não seja sustentado pela ansiedade, requer uma nova concepção de “si mesmo” e da vida, e, portanto, também da ciência e do universo.
Outras sociedades, rapidamente extintas sob a enxurrada de cultura ocidental, eram notavelmente livres de um ambiente dominado pela ansiedade. Assim, não é nenhuma coincidência que seus sistemas sociais fossem baseados na cooperação, e suas definições de “si mesmo”, ao contrário da nossa, fossem relativas, sempre definidas em relação a algo maior: a família, a comunidade ou a natureza.
Por que não estabelecer uma concepção diferente da vida e do Eu? Uma que seja fundamentada tanto no raciocínio científico quanto no psicológico, da qual um outro tipo de sociedade possa aflorar naturalmente. Quando mudarmos nossa própria ontologia e autodefinição, todo o resto mudará.
Naturalmente, surgem as dúvidas, e cá pra nós: uma mudança assim, tão profunda, não parece utopia? E mesmo que não seja, levará ao quê? Não tenho certeza, mas ao entender as dinâmicas da separação como processo histórico, reconheceremos a melhor forma de completar esse ciclo e, enfim, evoluir para um novo estágio do desenvolvimento humano. Afinal, a verdadeira revolução é sempre resultado de uma mudança interior.
“Deve ser afastado do passado… porque é necessário que acredite que está em melhor situação do que seus antepassados e que o padrão médio de conforto material segue aumentando ininterruptamente.”
— George Orwell, 1984
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Otimo texto e analise, me senti lendo algo reconfortante e real!Obrigada