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Contardo Calligaris: “Tenho medo de que coisas cotidianas não voltem nunca mais”

A geografia do coronavírus afeta bastante o psicanalista e escritor Contardo Calligaris, 71 anos. A Itália, seu país natal, contabiliza mais de 25 mil mortes – metade delas na Lombardia, a região da cidade onde nasceu, Milão. Nova York, que foi seu lar durante mais de uma década, é o epicentro da covid-19 nos Estados Unidos. E São Paulo, onde atende desde 1986 e mora desde sua volta da temporada nova-iorquina, em 2005, concentra a maior quantidade de vítimas no Brasil.

Daí que, ao longo de uma hora de entrevista por telefone, Contardo imprima um tom de voz ora afetivo, ora grave – a lembrança de hábitos que podem nunca mais voltar se faz acompanhar pela crítica a situações que não deveriam acontecer (o que inclui desde a divisão social que a quarentena realçou até o comportamento do presidente Jair Bolsonaro). Mas a conversa também tem espaço para o riso. O psicanalista entremeia suas respostas com observações bem-humoradas sobre paquera e sexo, por exemplo:

— In sex we trust — ele diz. — É o que vai nos dar coragem na hora de voltar.

O senhor é um italiano radicado no Brasil. Como sentiu o impacto devastador da covid-19 em seu país natal?
Senti de duas maneiras. Primeiro, pelos sobrinhos que tenho na Itália, que são quatro, considerando que os dois são casados. Todos são médicos, e um deles passou 14 dias em ventilação mecânica. Por sorte não morreu. O outro deixou a mulher e filhos em casa e está morando sozinho em um hotel, há dois meses, para proteger a família. A minha família são eles e meu filho, que está em São Paulo. O segundo impacto foi pela vida na Itália. Houve várias fotografias publicadas durante a quarentena, mostrando lugares bonitos, conhecidos, que hoje estão desertos. São os lugares da minha infância e adolescência, e de repente a Itália parecia uma praça metafísica de De Chirico (pintor considerado precursor do surrealismo, 1888-1978), habitada somente por estátuas. Há um vídeo em particular que tem um efeito muito grande em mim. Vou explicar com um exemplo. Talvez você conheça Piazza del Campo, em Siena, é uma das praças mais lindas do mundo, em forma de concha. Desejo que você a visite um dia. Metade dela é ocupada por bares e restaurantes, que não valem nada, você come uma pizza mediana. Mas o que importa é que todo mundo senta e, na frente, à noite, passeiam os jovens e as jovens, numa ida e volta constante por aquela praça grande. Não dá para chegar de carro, daí os guris, criados nessa cultura falocêntrica do automóvel, caminham balançando as chaves dos carros, para aparecer a marca e as minas verem. Hoje, aplicativos como o Tinder devem facilitar as coisas, os jovens podem marcar um encontro na praça. Mas, na minha época, a atração era passear, cruzando os olhares na espera de um momento, de um gesto a mais que sinalizasse uma possibilidade de romance. Vi a imagem da Piazza del Campo vazia e pensei nessa cena. Senti o medo de ela nunca mais voltar. Não é uma coisa extraordinária, é uma coisa cotidiana, e tive medo de que essas coisas não voltem mais, de que fossemos viver durante muito tempo uma desconfiança da presença do outro, tornando essa convivência impossível.

O senhor está apreensivo em relação ao que pode acontecer no Brasil?
Estou de dedos cruzados. Tenho tremenda antipatia pelo governo atual, acho (o presidente Jair) Bolsonaro tosco, mas acharia um pouco estúpido não desejar que a cloroquina funcione. “Mas isso vai cair bem para o Bolsonaro!” Ótimo, não tô nem aí, me importa saber se funciona. Da mesma forma, tendo a pensar que o distanciamento social no Brasil ainda não é suficiente, mas se aparecerem dados comprovando que o esforço que já fizemos conseguiu achatar a curva, bom, vamos lá, a gente não aguenta mais a quarentena. Que não seja pelo exemplo sinistro do nosso presidente, que não só é grosso, mas cruel. O fato é que há um comércio caindo aos pedaços, há gente que não tem mais como pagar o aluguel, cada um tem suas razões para querer voltar. Ninguém sabe se entramos em quarentena na hora certa. No fundo, existe uma grande perplexidade. Mesmo quando o isolamento for levantado e as crianças puderem voltar à escola, imaginemos julho, realmente não sei se vou concordar com a ideia de que meu enteado volte à escola naquele dia. Eu não sei se, no dia em que alguém declarar (o fim das restrições), vou ao cinema. Acho que não. E quando é que realmente vamos nos sentir bem para subir em um avião? Estou tentando me aproximar amigavelmente do Amyr Klink (navegador) para ver se depois que tudo isso acabar ele me leva para a Europa.

Você imagina como caiu o isolamento para quem estava sozinho há um ano e meio e recém tinha começado um namoro?
Sexo é um dos principais assuntos dos meus pacientes. Me vi tentando elaborar um kama sutra para tempos de coronavírus.”

Depois que o pior passar, vai ficar um medo residual, não?
Sim. Imagine como será para o público que frequenta shoppings, cafés e outros ambientes fechados. Mas in sex we trust (no sexo confiamos). Veja só: em Roma, o Papa suspendeu as missas uma semana antes de os grandes clubes de swing fecharem. O sexo resistiu uma semana a mais do que o Papa. Também na volta, é o que vai nos dar a coragem. O sexo é o que nos leva a modular, para não dizer quebrar, a quarentena. A maioria das pessoas pensa a quarentena em termos de “queria dar uma volta, ir ao bar, não aguento mais, as crianças estão sem aula”. Mas esquecemos os acidentados do sexo e do amor. Você imagina como caiu (o distanciamento social) para alguém que estava sozinho há um ano e meio e recém tinha começado um namoro? Ou para um casal que estava à beira de se separar? Sexo, aliás, é um dos principais assuntos entre meus pacientes. Perguntam se transar é permitido agora, dizem que não vão beijar, querem saber se faz diferença fazer vestido, por trás, em cima da mesa… Eu me encontrei em mais de uma situação tentando elaborar um kama sutra para tempos de coronavírus. Sou bastante indulgente com isso. Lembro que no início da epidemia de aids, nos anos 1980, nada era permitido. Nem sexo oral. As pessoas ficavam loucas. O efeito de tanta proibição foi negativo, “prefiro me contaminar logo”, pensavam alguns. Sexo e amor são muito importantes. A literatura está cheia de exemplos de que o sexo e o amor nos levam a arriscar a vida, não hesitamos muito.

O negacionista acha uma razão que esconde suas próprias, que ele julga egoístas, mas são normais. E válidas. Dimensões inteiras do comércio estão sumindo. É um desespero. Temos de aceitar como digno.”

Suas colunas no jornal Folha de S.Paulo criticam os negacionistas, aqueles que minimizam a gravidade da covid-19. Como lidar com eles?
Os negacionistas são vítimas de seus próprios princípios morais. É como o evangélico com desejos homossexuais que mal consegue reprimir e aí grita aos quatro cantos que os homossexuais são malucos perigosos que deveriam ser confinados numa ilha. A pessoa pode ter uma série de razões para querer que esse vírus não exista: está destruindo minha esperança de passar da classe D para a C, eu queria comprar um cruzeiro na CVC, vou à falência porque meu barzinho tá fechado… Mas como eu, de um jeito estupidamente moralista, considero errado ou proibido dizer que estou me ralando, prefiro dizer que não tem vírus nenhum, é uma invenção, vou reabrir o meu comércio, sou patriota. Não tem nada a ver, um patriota também pode ser a favor do confinamento, se ele entende que é isso que vai proteger o seu país. O negacionista acha uma razão que esconde as suas próprias, que ele julga egoístas, mas são normais. E válidas. Dimensões inteiras do comércio estão sumindo da face da Terra. O que vai ser do varejo? A gente vai voltar a comprar na papelaria da esquina ou vai ficar para sempre comprando pela internet? É um desespero tremendo. Temos de aceitar isso como um fato digno.

Uma das grandes queixas de quem é contra o isolamento é de que “é fácil ficar em casa quando se tem dinheiro ou emprego garantido”. Parece ser o principal dilema do país.
Espero que o corona passe sem ser uma carnificina social. A impressão que tenho em São Paulo é de que a minha quarentena é um luxo, e de que 50% da população não está em isolamento. Pensamos sempre nas pessoas da saúde, mas e os porteiros de edifícios, se materializam como? O lixo na porta do apartamento, como aquilo é magicamente retirado duas vezes ao dia? E os empregados do transporte público? Como é que tem um porteiro, que evita o meu contato com os entregadores? Como é que tem entregadores? É um exército de pessoas da periferia, não necessariamente das favelas, que a cada manhã saem encarando o perigo de se contaminar. Os ônibus voltaram a estar lotados, não sei quem teve a ideia de diminuir o número de veículos, só para baixar a gasolina, porque iria acabar aumentando a lotação. Esse exército permite a uma casta que não é mínima, as classes A e B, com alguns pedaços da C, se manter protegida. É uma tamanha confirmação da dolorosa desigualdade social brasileira. Seria útil que as pessoas da A e da B lessem Gilberto Freyre durante este período, não Casa Grande e Senzala, mas Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso, para entender como chegamos nessa. A divisão e a desigualdade existem no mundo inteiro, mas nós temos algo distinto. Os que podem se proteger e os que podem se contaminar. Será que a pandemia vai nos ajudar a pensar o Brasil, a reinventar o país de um jeito um pouco diferente? Ou será apenas a comprovação da nossa divisão social? É preciso um tipo de apoio do governo absolutamente inédito na história da economia política. Jogar dinheiro por helicóptero, ter a coragem de assumir déficit público contrário aos ideais e ver o que vai acontecer. Não é de R$ 600 que estamos falando. É preciso imprimir dinheiro pra cacete. Apostar em uma renda básica. O comércio, por exemplo, construiu uma vida inteira em torno de hábitos de consumo que podem desaparecer. Não tem saída (para o governo). Ou então vamos criar um exército de excluídos e desesperados.

Neste momento, quase 4 bilhões de pessoas estão na mesma merda que eu, nos EUA, na Europa, na Índia, no Japão, na China. O mundo inteiro vive uma ficção científica de invasão extraterrestre, todos dizendo: vamos nos confinar para reduzir a curva de infecção. A ideia de uma experiência comum, para as gerações mais jovens, acho que será marcante. Um nivelamento que não existia. É a minha esperança.

O senhor já escreveu sobre o coronavírus como metáfora do refluxo: estávamos em direção a um mundo cada vez mais aberto, sem fronteiras, e agora surge a necessidade de ficar em casa. Mas também já vínhamos em uma toda de muros sendo erguidos, de a Europa e os Estados Unidos refratários a refugiados e imigrantes. A doença veio a calhar para quem quer um mundo mais fechado, não?
É verdade. O que faremos com a doença depende de nós, como sempre. Pensando na metáfora do refluxo da globalização, do olhar condenatório ao estrangeiro, me lembro do Eduardo Bolsonaro (deputado federal e filho do presidente, ele culpou a China pelo coronavírus) e sua estupidez. Uma coisa de adolescente maluquinho. Há uma piada da internet americana que achei divertida: quando a covid-19 estourou nos EUA, disseram que o México estava pedindo para acelerar a construção do muro (que o presidente americano Donald Trump mandou erguer para barrar a imigração). Ao mesmo tempo, uma vez que as classes mais ricas deverão ficar mais cautelosas, quem tentará viajar serão os imigrantes econômicos, saindo de países devastados. Mas vejo também uma situação contrária: neste momento, quase 4 bilhões de pessoas estão na mesma merda que eu, nos EUA, na Europa, na Índia, no Japão, na China. Todos estamos em uma experiência parecida. Em quarentena, com medo de um inimigo comum. O mundo inteiro vive uma ficção científica de invasão extraterrestre, com reações parecidas, mais dura em algum lugar, mais leve em outro, mas todos dizendo: vamos nos confinar para reduzir a curva de infecção. A ideia de uma experiência comum, para as gerações mais jovens, acho que será marcante. Um nivelamento que não existia. É a minha esperança.

De certa forma, o vírus aniquilou idealizações como felicidade, amor perfeito etc. A palavra chave se tornou sobrevivência, seja do ponto de vista da saúde, seja econômica.
Não é uma novidade. A grande palavra chave desde o século 19, desde que a cultura ocidental transferiu para a medicina a tarefa de pensar, é a sobrevivência. O valor supremo é viver um pouco mais, viver a boa saúde. As maiores invenções do século 20 foram remédios como a penicilina, o higienismo e a ginástica obrigatória. Isso depois de quase 3 mil anos de literatura que discutia quais os valores que valiam a pena ser defendidos, aquela coisa para a qual e pela qual nós estaríamos dispostos a dar a vida. Giorgio Agamben, um filósofo italiano da atualidade, questionou: o que é uma sociedade que não tem outro valor senão a sobrevivência? É a redução da vida. O simples fato de sobreviver não deveria ser um valor em si. É uma posição muito preguiçosa em termos morais.

Em entrevista a GaúchaZH em 2019, o senhor falou sobre a onda de psicopatia, a possibilidade de desconsiderar completamente a vida do outro. O corona acentuou esse problema?
Tento ocupar uma posição conciliadora. Mas é difícil. Peguemos, por exemplo, o mistério em torno do resultado dos testes (para covid-19) do nosso presidente. Boris Johnson (primeiro-ministro britânico) se saiu muito bem nisso, mostrou que é capaz de se infectar e de se curar. Soa muito estranho Bolsonaro negar o acesso a isso. Se você escolhe uma carreira pública, deve esse tipo de informação ao público. Vale o mesmo para o irmão do Hemisfério Norte (Trump), que não revela seu imposto de renda, ao contrário dos seus antecessores. O comportamento de Bolsonaro, as aglomerações que ele promove ou de que participa, os gestos de contato físico, as selfies, às vezes pegando o celular dos outros, os cumprimentos, limpar o nariz com o braço e depois dar o mesmo para uma idosa… Meu, não é possível que ele seja ignorante das situações de contágio. Tem a frase dele (sobre manifestação em seu apoio em Brasília), “Isso não tem preço”. Significa que o custo desse banho de contato caso ele seja positivo e assintomático, a vida ou a morte dessas pessoas, é totalmente irrelevante à vista do gozo que lhe proporciona ser aprovado e aclamado por um grupo que grita “mito”. Se for um mito, é um mito do horror, que não se importa com a vida da gente, só com o prazer que lhe dá ter cem pessoas que esperam por ele. Isso é psicopatia. Não tem nenhum nível de empatia, ele usa essas pessoas como a gente usa os peões de um jogo de xadrez, como estratégia de um jogo. Não me comovo se um peão vá ser comido pelo bispo.

Na mesma entrevista, o senhor falou sobre perversão, que o senhor definiu como entrar em um grupo que te permite esquecer os freios morais básicos. Estamos vivendo um período perigoso, em que as privações, as perdas e os medos favorecem esse tipo de situação?
De fato, é quase sempre assim na dita vida política: procuramos engajamentos coletivos, “valores” supostamente comuns, partidos, religiões etc., tudo isso para fugir de nossa liberdade e responsabilidade de pensar, julgar e agir como indivíduos. Além do descanso de nossa responsabilidade, esses supostos valores comuns nos autorizam a cometer qualquer barbaridade. Você, sozinho, não se autorizaria a dar socos em alguém que passeia com uma camiseta vermelha, um exemplo que aconteceu em Porto Alegre, mas uma vez que você se autoriza da “pátria”, tudo é possível. Por isso Samuel Johnson (pensador inglês, 1709-1784) tinha razão de observar que o patriotismo é o último refúgio do canalha. Peguei o patriotismo, mas poderia pegar, como exemplo, a crença religiosa, o partido etc. Obviamente, numa época de forte polarização, os indivíduos tendem a pensar cada vez menos, tendem a deixar “valores” supostamente comuns dirigir seu pensamento e suas vidas. Coloco aspas em “valores”, porque, nesse caso, os valores só servem como desculpas.

O confinamento e o medo da doença e da morte devem aumentar os casos de doenças psiquiátricas?
Sim. O confinamento bate em sintomas que já existiam antes. Quem sofria de claustrofobia desde sempre vai ter agora uma impressão constante de sufocamento, parecida com a ideia de ser enterrado vivo num caixão. Outra coisa: nossa interação social é muito maior do que a gente se lembra. As quatro palavras trocadas com o motorista do uber, o bom dia do porteiro, essas interações pequenas, somadas, são muito importantes pra nossa saúde psíquica. No fundo, podem ser fingidas, mas tanto faz, no fim do dia, somam, todas têm um valor, entre aspas, terapêutico, contribuem ao funcionamento psíquico. Elas estão fazendo falta às pessoas, mais do que elas se deem conta. Enfim, eu, como todos os terapeutas, estou trabalhando mais, atendendo mais.

É possível especular como seremos num “depois” do confinamento universal? Vamos, mesmo, pensar mais no coletivo depois da pandemia, como muita gente está projetando?
(Risos) Tenho o maior carinho pelas pessoas que acreditam nisso. São amigos, camaradas. Compartilhamos da mesma esperança, eu tinha essas esperanças antes mesmo do coronavírus. Será que acredito que o vírus seja um grande aliado? Não sei. Eu sou pessimista em geral, como qualquer freudiano. Tendo a imaginar que alguns hábitos mudarão ou terão mudado. Mas sei que o valor pedagógico e transformador das experiências é sempre incerto e sobretudo lento.

(Fonte: gauchazh)

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