É na intimidade de circuitos de múltiplos contatos entre os neurônios, auxiliados por células gliais, que transitam nossos instintos, afetos, pensamentos, subjetividade, nossa lógica, atitudes e estratégias, enfim, quem somos. É o que escrevem Denise Maria Zancan* e Renata Menezes Rosat** no artigo Como nosso cérebro nos torna quem somos, para o caderno PrOA. Confira abaixo:
Se o que somos é o resultado de nossas funções cerebrais, é importante esclarecer que as pessoas não são pré-determinadas, mas se constituem ao longo de sua vida. Somos todos diferentes não apenas porque resultamos de uma constituição genética diferente, mas porque vivemos diferentes experiências. No final das contas, ambos fatores, a genética e a experiência, agem sobre os circuitos neurais, sobre as conexões entre os neurônios, as sinapses. A cada aprendizagem, as sinapses de novas memórias são reforçadas, enquanto fatos esquecidos são sinapses enfraquecidas.
Cada comportamento é o resultado da atividade dos nossos circuitos cerebrais formados ao longo da vida. É graças a essa plasticidade que experiências traumáticas podem ser superadas, que nosso humor é adaptável ao contexto, que nossas atitudes podem melhorar com nossos erros. Com essa plasticidade podemos ir mais longe. Inventamos, planejamos a longo prazo, dimensionamos as consequências de nossos atos. No entanto, muitas dessas capacidades não são exclusividade humana. O cérebro vem evoluindo há milhões de anos. Mantemos kits neurais básicos de sobrevivência, presentes em todos animais. Responder a certos estímulos, regular nossas vísceras, corrigir a postura corporal e a locomoção, formar memórias, manifestar nosso medo e raiva fazem parte deste kit.
Muito já se conhece sobre localizações de funções no cérebro, mas os neurocientistas seguem mesmo interessados em decifrar a área mais desenvolvida que os humanos possuem: o pré-frontal. Se há uma área em que podemos localizar nossa personalidade, essa seria o pré-frontal. Há pesquisas incríveis sobre o desenvolvimento das funções pré-frontais nas crianças quando estimuladas a planejar, antecipar e reconhecer consequências de suas atitudes e colocar-se no lugar do outro. Capacidades que estamos acostumados a cobrar apenas dos adultos.
A neurociência, querendo ou não, cai como uma luva no quesito multidisciplinaridade. Quem mais senão o cérebro poderia estar vinculado a tantas, se não todas, facetas humanas? Sobre o cérebro, do ponto de vista molecular ao emocional e comportamental, muito vem sendo compreendido. Só que ao conhecê-lo melhor, deparamos com a realidade nua e crua dos mecanismos neurais, que pode, à primeira vista, ir contra preceitos até então soberanos. É o caso do livre-arbítrio. Ao ver como o cérebro processa e avalia decisões, encaramos o fato de que muita atividade neuronal já aconteceu antes de nos darmos conta de nossas vontades e intenções. Também é sabido que não há atividade cognitiva sem emoção – nem que seja uma pitada. Além disto, é bem estabelecido que o cérebro não toma qualquer decisão sem consultar a fisiologia do corpo. Uma área cerebral chamada lobo da ínsula, mais desenvolvida nos humanos que em outros primatas, faz isso. Seus neurônios analisam os dados que recebem, associando uma sensação subjetiva emocional antes de tomarmos uma decisão, especialmente sobre problemas difíceis, que envolvem relações sociais.
Outras áreas mais desenvolvidas no nosso cérebro são as da linguagem. Diz-se que a linguagem verbal é um dom da espécie humana. Ainda não há um veredicto final da ciência sobre isso, mas sim, é bem provável. Regiões específicas cerebrais processam os léxicos fonológico, sintático e semântico. Essa função que tanto comanda as nossas vidas localiza-se, na maioria das pessoas, no hemisfério esquerdo, enquanto a musicalidade emocional da fala ocupa uma localização similar, mas no hemisfério direito. A aprendizagem da linguagem pelas regiões cerebrais responsáveis floresce em conexões sinápticas e, com poucos meses de vida, independente da formação cultural de um povo, o cérebro aprende a reconhecer os fonemas da língua falada a sua volta, associando-os à mímica facial típica de cada som, seguindo um padrão universal. Mas, de novo, descobriu-se que não somente as crianças, mas outros mamíferos também são capazes de perceber categorias fonéticas.
Por isso, se quisermos entender por que somos como somos, precisamos também conhecer o cérebro dos outros animais. As pesquisas do grupo de Suzana Herculano-Houzel reconhecem que o encéfalo humano não possui um número excepcionalmente maior de neurônios cerebrais que explique as nossas habilidades cognitivas superiores. Talvez o que possa justificar essa diferença cognitiva seja a incrível ideia que nossos ancestrais tiveram de, um dia, cozinharem a comida que consumiam. Daí pra diante, nosso cérebro que arduamente orquestrava comportamentos e trabalhosas funções digestórias e metabólicas para obter energia de alimentos crus pôde, então, se dedicar a outras atividades, como falar, filosofar, criar. E a história humana tomou um rumo diferente das outras espécies.
(Autoras: Denise Maria Zancan*: Professora do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS.
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Neurociências do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS;
Renata Menezes Rosat**: Professora do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS)
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