A arquiteta Marília Nogueira* estava em Londres, em 2009, durante o auge da pandemia de H1N1, quando viveu uma crise de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). “Foi horrível. Comecei a redobrar cuidados com limpeza, usar máscara, o que era comum entre as pessoas. Mas depois, aquilo foi se tornando excessivo, eu tinha a sensação de que poderia meinfectar com qualquer contato, cheguei a lavar as mãos inúmeras vezes, acordava à noite para lavar as mãos e ficava lendo o tempo todo sobre outros casos. Até o ponto de não sair mais para as aulas. Passei três dias sem sair de casa”, lembra. ”
Antes disso eu já tinha alguns sintomas de TOC, mas, possivelmente por preconceito, nunca tinha procurado ajuda médica. A gente tende a ignorar algumas coisas. Só que em Londres, os sintomas começaram a interferir no meu cotidiano, me impedir de fazer as coisas. Era uma repetição incessante”, explica Nogueira, que desde então iniciou tratamento psicológico para o transtorno. “Tenho acompanhamento terapêutico e tomo medicamentos. Meu TOC está controlado.”
O surto do novo coronavírus fez a arquiteta lembrar o período conturbado de dez anos atrás. “É um assunto que não para de ser falado. O que às vezes é bom, porque conscientiza as pessoas sobre a doença, mas pode ser um gatilho para quem tem TOC ou transtorno de ansiedade”, conta. “Como disse, o meu problema está sob controle, mas mesmo assim, busco exercitar a calma. Tenho seguido as orientações básicas de higienização, mas sem excessos.”
Os sintomas variam de pessoa para pessoa, explica Paola Almeida, terapeuta comportamental e professora da psicologia da PUC-SP. “Apesar disso, o diagnóstico relacionado aos pensamentos, obsessões e rituais de contaminação seja o mais comum”, diz ela. “Muitas vezes, estão associados a esses pensamentos repetitivos de contaminação — por HIV ou substâncias, por exemplo — e acompanhado de comportamento de evitação repetitivo: eu deixo de ir a lugares, lavo a mão repetidas vezes, e é aí que mora o problema. Quando essa repetição vira tão grave, passo tanto tempo pensando sobre aquilo, e isso impede que eu siga com minha atividade cotidiana.”
Para Almeida, “o importante é que pessoas com ou sem transtorno de ansiedade ou transtorno obsessivo-compulsivo cuidem da sua saúde mental”. “Nossa preocupação é de ser um vetor para as pessoas que a gente ama, pessoas com mais idade, crianças, pessoas com problemas respiratórios. A disseminação de notícias sobre a covid-19 está transformando eventos que até então a gente tratava com naturalidade, como dar um beijo e abraço.”
Recorrer a informações concretas e qualificadas sobre a covid-19, para evitar a insegurança, é algo fundamental a quem convive com os transtornos, segundo a psicóloga. “O TOC é uma doença da dúvida. Então a primeira coisa a se fazer é aceitar que a gente pode se preocupar com a situação, mas manter as atividades cotidianas. É preciso ouvir os dois lados das informações”, alerta. Manter-se realista também é uma forma de evitar crises. “Notícias como o do mapeamento do vírus mostram que a pandemia pode ser controlada e vão alterando a cara dessa ameaça no dia a dia.”
Vida de ansiedade
A manifestação de sintomas de ansiedade e de patologias comportamentais impulsionados pelo novo coronavírus tendem a aumentar nas próximas semanas, no Brasil, dizem especialistas. O país tem o maior número de ansiosos no mundo, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS): são 18,6 milhões de brasileiros (9,3% da população) que convivem com o transtorno.
“Hoje um paciente cancelou a consulta porque vem de ônibus para o consultório, e estava com medo de ser infectado. No caso dele, ele já tem uma leitura muito deturpada da realidade, um quadro de psicose”, conta o psiquiatra Leonardo Ramos. Segundo o médico, além de TOC, transtornos de ansiedade generalizada e fobias também são comuns nesse período.
Os dados confirmam. Entre 2002 e 2003, outro coronavírus, causador da Sars (síndrome respiratória aguda grave), levou à morte 800 pessoas no mundo, e o pânico causado por ele deixou 42% dos sobreviventes com algum tipo de transtorno mental, como mostrou uma pesquisa publicada na revista East Asian Arch Psychiatry, em 2014. Mais da metade das pessoas teve transtorno de estresse pós-traumático.
No início de março de ano, a OMS publicou uma nota aconselhando que as pessoas evitem assistir, ler ou ouvir notícias sobre coronavírus que possam causar angústia. O alto nível de estresse em pacientes que ficaram em quarentena devido ao vírus também foi tema de um artigo na revista britânica de medicina Lancet, em fevereiro de 2020, no qual pesquisadores fazem uma revisão de impacto psicológico do isolamento. “Privar as pessoas de sua liberdade para o bem público em geral é muitas vezes controverso e precisa ser tratado com cuidado. Se a quarentena é essencial, nossos resultados sugerem que os funcionários devem tomar todas as medidas para garantir que essa experiência seja a mais tolerável possível para as pessoas”, dizem os cientistas. O texto sugere, entre outras atitudes, que é preciso dizer “às pessoas o que está acontecendo e por que, explicando quanto tempo isso continuará”.
Leonardo Ramos explica que a ansiedade é algo fisiológico, comum a todo mundo e essencial para a nossa sobrevivência. “A ansiedade faz, por exemplo, que a gente decida, perante uma situação de perigo, se vamos lutar ou fugir. É o que nos prepara biologicamente para enfrentar os desafios”, explica. “No caso de uma pandemia como a do novo coronavírus, a ansiedade é um elemento que precisa existir. Inclusive, governantes têm que sentir algum grau de ansiedade a respeito dessa questão, senão terminam fazendo declarações bizarras, como dizer que o problema ‘não é nada’ ou ‘uma fantasia’.
Como o TOC, a ansiedade se torna uma doença quando passa a afetar o cotidiano dos sintomáticos, interferindo nas atividades e na saúde deles. “Pessoas que têm transtorno de ansiedade tendem a ter sensação grande de modo desproporcional aos problemas e a se sentirem excessivamente inseguras frente a situações novas. A tendência é que pessoas ansiosas se descompensam numa situação como essa [do surto de covid-19]”, frisa Ramos.
A socióloga Roberta Cardoso* convive com o transtorno de ansiedade generalizada desde 2016, para o qual faz tratamento, e, de licença-maternidade, tem-se sentido ansiosa com os casos de coronavírus no Brasil. “Minha bebê está com três meses. Pretendia começar a sair com ela agora depois desse primeiro trimestre de vida, mas estou considerando adiar as saídas e não utilizar o transporte público com ela tão cedo”, conta.
O transtorno de Cardoso está associado a um trauma após o incêndio no local onde ela trabalhava. A socióloga desenvolveu quadro clínico de ansiedade e depressão. “Minha ansiedade está bastante controlada, mas em geral é uma sensação de que o pior vai acontecer, de que vai atingir as pessoas que eu amo, principalmente a bebê. Meu marido está com um show marcado pra fazer, e já estou preocupada tentando conversar com ele sobre a possibilidade de adiar”, diz ela. “Como estou em casa o tempo todo, tenho conseguido evitar ouvir a respeito e assim fico mais sossegada.”.
O aumento do número de testes positivos do coronavírus no Brasil já refletem no comportamento de quadros de ansiedade. “Isso é uma coisa que já percebi hoje em uma paciente. Ela tem um quadro de ansiedade, com alguns sintomas do tipo compulsivo-obsessivo – e desde que o número de casos de corona aumentou, ela tem excessivamente usado álcool gel. Ela comentou comigo que, enquanto me esperava para a consulta, passou álcool três vezes nas mãos. Isso claramente é comportamento que vai para a ordem da compulsão”, relata Leonardo Ramos.
Uma preocupação do psiquiatra, no entanto, é a interferência dos casos de ansiedade nos pontos de atendimento a pessoas com covid-19. “Um alerta sempre importante de fazer é sobre pessoas que vão começar a procurar serviço de saúde só porque estão com coriza, espirrando. Isso sobrecarrega o atendimento, as equipes podem começar a negligenciar os casos que precisam de fato de atenção”, destaca. “Nestas primeira semanas, é até mais comum situações de pessoas ansiosas irem aos hospitais para atendimento.”
*Nomes fictícios a pedido das fontes.
(Fonte: tab.uol.com.br)
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