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Cinderela, um conto sobre a superação do sofrimento

O conto Cinderela, ou Gata Borralheira, possui várias versões, sendo a mais famosa a do escritor francês Charles Perrault, de 1697, que foi baseada em um conto italiano popular chamado La gatta cenerentola (“A gata borralheira”), com a famosa fada madrinha. A versão dos irmãos Grimm, também é bastante conhecida, entretanto nela não há a figura da fada-madrinha. E é sobre essa versão, que baseio a análise, uma vez que é mais rica em simbologia

Cinderela trata do tema da superação do sofrimento, o que gera um apelo emocional imenso a milhares de mulheres ao redor do mundo.

O tema central do conto é a rivalidade fraternal. A rivalidade entre irmãos é um tema bastante conhecido na Mitologia. Podemos citar como exemplo o mito bíblico de Caim e Abel.

A inveja e a rivalidade são sentimentos que toda criança costuma passar, e que não necessariamente são vividos entre irmãos de sangue. Eles podem se manifestar entre primos ou até mesmo entre amigos.

Além disso, de certa forma, praticamente toda criança, em maior ou menor grau, e em determinado momento, se sente preterida pelos pais. Ela passa a sentir que sua mãe é quase uma madrasta, pois há aquele momento que a criança deixa de ser um bebê e passa a ter algumas obrigações. Ela não tem mais o colo materno quando chora e a mãe parece não ter mais paciência com ela. E é justamente esse lado infantil que faz birra e que ainda quer colo, mas que ainda habita em nós, que precisa ser superado para ocorrer o amadurecimento da personalidade.

Todavia observando o conto Cinderela veremos que a madrasta e as irmãs terríveis foram imprescindíveis para o desenvolvimento e crescimento da heroína. Sem elas, ela ainda estaria vivendo o anseio natural de ser reconhecida como especial, mas sem ser transportada a uma nova realidade superior e transcendente, como ocorre ao final do conto.

O conto se inicia com a morte da mãe da menina, sendo substituída pela madrasta. O pai de Cinderela só aparece no começo do conto e não é nem bom nem mau, é apenas um homem rico e comum. A trama, então, se desenvolve ao redor de personagens femininos, mostrando que a heroína deve trabalhar sua identidade enquanto mulher antes de se unir ao príncipe.

Nos contos de fadas, a morte da mãe simboliza aquele momento critico na vida das crianças, chamado de perda do paraíso, como foi explicado anteriormente.

A boa mãe de Cinderela morre e sobre seu tumulo cresce uma árvore onde pousa uma pomba branca que aconselha a menina. Isso significa que alguma coisa sobrenatural sobrevive à morte da figura materna positiva e a substitui. Sendo uma espécie de fetiche a qual encarna o espírito da mãe.

A identificação com a mãe boa é um sério risco a individuação da mulher. Ela precisa ter um comportamento feminino autentico e não um modelo feminino típico. Dessa forma ela poderá mostrar a sua individualidade e a sua diferença no mundo.

A morte da mãe significa, pois, simbolicamente, que a menina toma consciência de que não pode mais se identificar com ela, ainda que a relação positiva essencial e afetiva permaneça. A morte da mãe é, portanto, o inicio do processo de individuação.

É muito mais difícil para a mulher esse processo de não seguir de um modelo feminino típico padrão. Desde pequena as meninas tendem, muito mais que os meninos, a seguir umas as outras em termos de roupas, penteados, música, comportamento, e isso as leva a se transformarem em um rebanho de ovelhas. Por essa razão chovem revistas femininas “ditando” moda e comportamento.

As que não se seguem a moda e os padrões são postas de lado e ai começa o que hoje se denomina bullying. Entretanto, quem sofre o bullying e é posto de lado tem muito mais chances de entrar na individuação.

Quanto mais inconsciente de sua própria personalidade é a mulher, mais ela tenderá a falar mal das outras e de pregar peças maldosas, pois somente assim ela pode marcar diferença. No conto, a mãe e as irmãs simbolizam a mulher que não conseguiu ser ela mesma enquanto individuo. Não conhecem sua própria personalidade e não desenvolveram nenhum trabalho criativo e pessoal.

Cinderela passa então a lavar, passar e cozinhar para a madrasta e as irmãs, e acaba dormindo entre as cinzas. Cinderela esta se tornando uma personalidade única e por isso incomoda a família, que a vê como uma inimiga. Elas são como um rebanho que percebeu que um de seus membros deseja seguir seu próprio caminho.

Quando alguém empreende uma analise, é comum que a família inteira se agite e se irrite com esse individuo, pois é justamente essa pessoa que está tirando a todos do estado de inércia.

Um dos trabalhos de Cinderela é fazer a triagem de uma grande quantidade de grãos, simbolizando o esforço imenso que a consciência deve fazer para se separar do desejo de seguir seus ancestrais.

As cinzas representam a humilhação e a contrição. A contrição é a forma mais profunda e eficaz de remorso, pois ela cura todos os pecados. Aqui o ego entra em contato com sua sombra, seu lado negativo. Ele é reduzido a pó e percebe que deve ceder a poderes e forças do inconsciente que são muito maiores que ele. Esse momento traz muita humildade.

Cinderela também passa a ter ajuda de animais e da árvore onde sua mãe está enterrada para poder ir ao baile. Isso significa que Cinderela passa a confiar em aspectos do seu inconsciente ligados aos seus instintos e ao legado deixado pela Boa Mãe em sua psique. Mas o fato de se relacionar com figuras da natureza significa que ela ainda não está apta a se relacionar e estabelecer laços, o que é algo que faz parte da natureza do feminino.

Cinderela vai três vezes ao baile, com uma bela carruagem, símbolo da realeza e de algo que a carrega em direção a sua verdadeira vida, mostrando que em breve ela se tornará uma rainha. Entretanto na ultima vez o príncipe, manda que passem piche na escadaria e, quando a moça passa, seu sapato do pé esquerdo fica grudado. O príncipe pega o sapatinho, que é pequenino, gracioso e todo de ouro.

O sapato simboliza liberdade, pois ele que deixa nossos pés confortáveis e aquecidos para podermos nos locomover onde quisermos. Além disso, ele representa a vaidade feminina, uma vez que as mulheres são apaixonadas por sapatos.

O ouro simboliza aquilo que Carl Jung denominou de Self, ou si-mesmo, que representa o centro de nossa personalidade tanto consciente quanto inconsciente e que ordena tudo. Ele é a imagem do potencial mais pleno do individuo, nossa autoridade interna e a posição central do destino de cada um de nós.

Portanto, o sapato, a leva ao encontro com o outro, a união com o lado masculino, que era ausente anteriormente, mas que agora se encontra disponível a auxiliá-la e a tirá-la da realidade conflituosa em que vive. Ele mostra a sedução e a beleza femininas que encantam o homem.

É por essa razão, que o ato de se apaixonar por alguém é sentido como destino, pois provém desse centro interior, o Self.

As irmãs não conseguem calçar os sapatos, chegando ao ponto de se mutilarem seus pés para poder caber no calçado. Isso significa que ninguém pode viver a vida de outro sem mutilar uma parte sua. O Self nos manda sempre aquilo que devemos viver a porção que nos cabe e que é somente nossa.

É comum nas mulheres o mutilar seus corpos para poderem se encaixar em padrões estabelecidos pela sociedade, principalmente quando esse padrão alcançou algum êxito visível. Mas vemos que esses padrões mutilam nossa autoestima e nossa personalidade mais profunda.

Ao final, Cinderela alcança sua redenção e se casa com o príncipe e as irmãs malvadas são punidas tendo seus olhos furados por pombos.

As irmãs estão cegas. Cegas para si mesmas e para quem elas realmente são. Vão passar a vida tentando ser outra pessoa e tentando se encaixar em padrões.

Cinderela se tornar alguém da realeza mostrando que não é mais alguém comum. Ela encontrou a transcendência e sua realidade foi transformada, transmutada. Ela agora pode seguir sua personalidade mais profunda sem se importar com os padrões limitantes da sociedade e de sua família.

(Autora: Hellen Reis Mourão,é analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas.

Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ)

Hellen Reis Mourao

Hellen Reis Mourão é analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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  • Adorei!!! Muito mais profundo do que poderia pensar!!
    Ps: página mto interessante, estou fazendo análise e venho aqui p ler textos p minha auto-analise!!!

  • Fantástica abordagem. A análise nos mostra como é rica e vasta a nossa psique em contrapartida com o cotidiano que vivemos.
    Seriam os sonhos a maneira de extravasarmos e vivenciarmos tão extenso e complexo conteúdo?
    Adorei!!!

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Hellen Reis Mourao

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