Surge e se propaga uma onda de denúncias por abusos sexuais cometidos por homens. Descobre-se assim algo que sempre soubemos, mas que, em geral, era perdoado ou aceito como se fosse parte da suposta “natureza” masculina.
Como na corrupção na política, trata-se da revelação do óbvio, que ululava, mas que ninguém ouvia. Ótimo. Mas eis que algumas amigas confessam viver uma contradição.
Por um lado, por serem mulheres, sabem exatamente de que se trata: já sofreram na pele violências que a maioria dos homens consideraria “pequenas”, abusos que muitos sequer catalogariam como abusos, aquelas agressões que os próprios agressores não enxergam. Por outro, temem que a onda de denúncias corte as asas de um certo atrevimento masculino, que talvez seja ingrediente necessário das aproximações entre homens e mulheres.
De fato, em nossa cultura, presume-se que o homem seja o primeiro a se expor e manifestar seu desejo, e que a mulher aceite ou não.
Essa divisão de tarefas é funcional. Desde sua chegada ao mundo, o homem sente-se seguro de ser o que a mãe e os genitores queriam; por isso, para o resto da vida, em regra, como um joão-bobo, ele pode levar recusas e voltar para sua posição inicial, sem se abalar.
A mulher, ao contrário, é afetada por qualquer resposta negativa; uma recusa a atira facilmente numa autodepreciação depressiva. Fraqueza feminina “congênita”? Não. É mais uma herança das expectativas familiares: enquanto desde o começo o menino acha que ele é exatamente o que a mãe queria, a menina sempre é levada a duvidar: será que eu, por ser menina, sou mesmo o que eles esperavam?
Justamente, se a mulher interroga o espelho frequentemente, é porque sempre se pergunta se é mesmo bem-vinda ao mundo.
Conclusão: nossos costumes seriam sábios, pois uma negativa é menos tolerável por uma mulher do que por um homem.
Caso o “atrevimento” inicial masculino não possa ser mais o estopim do jogo amoroso, não se preocupe: inventaremos novas maneiras de jogar, possivelmente melhores.
Resta explicar porque, em tantos casos, o tal atrevimento se manifesta como abuso, que os homens, aliás, sequer reconhecem como tal. Nas declarações de Harvey Weinstein, Dustin Hoffman ou Kevin Spacey (que assediava rapazes), há um tom arrependido, necessário para serem perdoados, mas, mesmo assim, é óbvio que eles sequer entendem do que estão sendo acusados.
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O caso de Harvey Weistein é o mais rico em denúncias e depoimentos. O grande produtor de Hollywood, nos últimos 20 anos, foi assiduamente objeto de boatos sobre seu comportamento sexual. Acumulou um número enorme de vítimas, das quais conhecemos (agora) apenas aquelas que, tornando-se estrelas, perderam o medo (justificado) das represálias e ousaram falar.
Numa entrevista com Ronan Farrow, (“The New Yorker” de 23/10), uma das vítimas de Weinstein conta que, quando ela disse não, o produtor respondeu: “As minas sempre dizem não (…) Depois tomam uma cerveja ou duas e aí se jogam para cima de mim”.
Não dá para expressar melhor a convicção do pequeno macho, para quem é impensável que ele, menina dos olhos da mãe, não seja exatamente o que qualquer mulher ansiosamente quer. Aos seus olhos, a proposta só seria violenta no sentido que ele forçaria a mulher a ultrapassar suas próprias resistências e a aceitar enfim o que “realmente” quer: Weinstein e seu membro.
Weinstein, habitualmente, convidava uma mulher para seu quarto de hotel, deixava no ar perspectivas mirabolantes de emprego, fama e sucesso, ia ao banheiro e voltava de lá nu, de roupão, com o membro ereto (ninguém nos diz, aliás, como era esse membro). Como as mulheres o recusariam? Weinstein achava que ele era o único objeto adequado ao desejo delas, um verdadeiro talismã da felicidade – nu de roupão e gordinho, como um bebê de fralda.
Em suma, o machismo cotidiano dos Weinsteins da vida é um resto risível da primeiríssima infância masculina.
O estupro é efeito de ódio. O assédio à la Weinstein é o corolário de um transtorno narcisista que acomete os homens modernos, agarrados na certeza de que eles e seus pirulitos seriam a oitava maravilha do mundo. Por sorte (inclusive deles), enfim, há mulheres para lhes lembrar que não é assim.
(Fonte: Texto escrito por Contardo Calligaris e publicado na Folha de São Paulo – 9 de novembro de 2017)
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