Que aspectos da cultura mais nos afetam?
Contardo Calligaris: A nossa cultura faz parte do pacote de coisas que nos definem. Ela nos fabrica de tal forma que, mesmo que nos tornemos budistas, continuaremos a pensar e a sentir de determinada forma. Nesse sentido, a transmissão cultural é quase genética. Há muitos elementos da nossa cultura que contribuem para definir quem somos. Por exemplo, em nossa cultura não existem diferenças de casta. O que introduz a diferença social é o olhar dos outros. Isso faz com que nos preocupemos com a nossa imagem social. A necessidade de seduzir os outros para obter a aprovação e o reconhecimento é uma grande conseqüência da nossa cultura.
Quer dizer que nos preocupamos mais com nossa imagem do que com o que realmente somos?
Contardo Calligaris: A melhor maneira de enxergar as pessoas é como cebolas, que têm vários invólucros, mas não têm caroço. Nós não temos caroço, nós somos os invólucros. Não é tirando as roupas e acessórios que encontraremos “quem somos realmente”. Essa é uma reivindicação bastante recorrente no amor, por exemplo. “Você não me ama pelo que sou verdadeiramente. Você me ama porque tenho carro importado e uma casa na praia.” As mulheres têm estas frases: “Você me ama porque sou bonita, não por mim mesma”. Mas o que é “mim mesma”? Quem é você senão a pessoa que fez isso ou aquilo na vida, que acumulou coisas, que é bonita? Mas achamos, equivocadamente, que essas coisas são só superficiais. E essa sensação de que a nossa imagem não representa aquilo que realmente somos se tornou uma grande fonte de sofrimento hoje em dia.
Como formamos a nossa imagem?
Contardo Calligaris: Bom, o que nos define não é mais o berço, como era nas sociedades tradicionais, em que marquês nascia marquês, camponês nascia camponês e nenhum dos dois tinha qualquer possibilidade de mudar isso ao longo da vida. Então, temos que nos definir por meio das riquezas e das posses. Em nossa sociedade, as diferenças quantitativas se transformam em qualitativas. O que você tem e o que você pode acabam determinando como você é percebido pelos outros e por você mesmo. Assim, o materialismo é o meio pelo qual construímos nossa imagem e acaba influenciando, também, o que pensamos que realmente somos. Podemos esbravejar contra nosso materialismo, mas é por causa dele que a nossa posição social não é carimbada na nossa bunda ou na nossa cara, não nasce conosco. O materialismo e a imagem que ele nos permite construir para nós mesmos são necessários para se ter uma sociedade como a nossa.
Como usamos o materialismo para construir nossa imagem?
Contardo Calligaris: É um movimento circular. Precisamos de elementos que possam nos diferenciar e nos ajudar a construir nossa imagem social. Encontramos esses elementos nos desfiles de moda, na mídia, na publicidade e em milhares de outras experiências. E, aplicando nossa criatividade a esses elementos, construímos imagens para nós mesmos. Essas imagens, por sua vez, realimentam a moda, a mídia e a publicidade. Esse ciclo perdura porque a exigência de ser diferente, o individualismo, é outra grande regra da nossa cultura. Isso se torna uma corrida. Não podemos parar de buscar uma diferenciação.
De onde vem a exigência de sermos diferentes?
Contardo Calligaris: O valor supremo da nossa sociedade é o de sermos, cada um, um indivíduo singular. Isso é mais importante para nós do que pertencermos a uma comunidade. É irônico e contraditório, mas a única coisa que vai me dizer que sou um indivíduo e que sou singular é que os outros me reconheçam como tal. Para que me reconheçam, portanto, eu preciso pertencer a um grupo dos que me reconhecem como indivíduo. Se eu pertenço a um grupo, já sou menos individualista do que poderia ser.
No fundo, então, é o individualismo que causa o sofrimento ao qual você se referiu?
Contardo Calligaris: Há uma culpa em nosso individualismo. A autonomia é a expressão máxima do ideal de individualismo da nossa sociedade. Mas autonomia exige rebeldia, porque ser autônomo é desobedecer e se afastar da família. Na adolescência, lidamos com a contradição que está no discurso de todos os pais. É um discurso que diz “me obedeça e faça o que eu digo” e, ao mesmo tempo, “seja independente, se torne autônomo” e, portanto, “me desobedeça”. Na vida adulta, a culpa é substituída por algo análogo, que é a nostalgia. Sentimos saudades dos valores da vida comunitária, familiar. Com isso, nos tornamos individualistas com ideais comunitários. Construímos uma imagem singular, mas precisamos que ela seja reconhecida pela comunidade.
(Extraído da revista Playboy nº 347, P. 82 – 87)
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