A psicanalista e historiadora francesa Elisabeth Roudinesco explica* como as mulheres do final do século 19 e início do século 20 passaram do papel de analisadas para aquelas que analisam, participando dos grandes círculos psicanalíticos.

Roudinesco comenta a diferença entre a histeria das mulheres do povo e a das burguesas, aponta as semelhanças com os homens do meio e conta como os “casos” clínicos femininos, apresentados sob pseudônimos, passaram a ganhar nomes e abrir espaço para a história das mulheres. Confira abaixo:

No fim do século XIX, por ocasião do surgimento da psicanálise, as mulheres não estavam presentes na história das disciplinas psicopatológicas senão a título de pacientes: mulheres loucas ou histéricas, tratadas na Salpêtrière ou nos diversos hospícios da Europa, depois “escutadas” por Josef Breuer e Sigmund Freud no segredo de um consultório médico, entravam em cena pela doença psíquica.

O feminino era então assimilável a um corpo confinado em coerções e convulsões e esse corpo punha-se a falar, fosse nos gritos da mulher do povo, como na Salpêtrière, em Paris, fosse nas confidências das mulheres da burguesia vienense.

Nesse aspecto, existe uma diferença radical entre a histeria das mulheres do povo e a histeria das mulheres da burguesia. As mulheres loucas ou semiloucas saídas da periferia constituíam um desafio para a elaboração de uma clínica do olhar — a de Charcot —, ao passo que as mulheres vienenses, dissimuladas no segredo do consultório particular, ajudavam na construção de uma clínica da escuta, uma clínica da interioridade e não mais da exterioridade.

Ao contrário das mulheres do povo, essas burguesas tiveram direito a uma vida privada, num sentido íntimo. Existiam porque seu sofrimento permitia aos homens da ciência elaborar uma nova teoria da subjetividade.

Até recentemente, todas essas mulheres, independentemente de sua origem, foram apontadas como “casos” e designadas por prenomes inventados: Augustine, Anna O., Emmy von N. etc.

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A partir dos anos 60, os trabalhos da historiografia científica permitiram identificá-las, dar-lhes um nome e atribuir-lhes um lugar à parte na história da psicanálise e da psicopatologia. Em outros termos, para que essas mulheres pudessem adquirir finalmente um status na história geral da psicopatologia, foi preciso que se desenvolvesse nesse domínio uma crítica do saber clássico e que se construísse uma “história das mulheres”.

As primeiras mulheres psicanalistas foram tanto ex-pacientes, tratadas em geral por graves problemas psíquicos, quanto mulheres marcadas por um destino excepcional: psicose, assassinato, suicídio, violências diversas. Seus sofrimentos e sua vontade de serem reconhecidas exprimiam um protesto e uma revolta contra sua condição no seio da sociedade ocidental do fim do século XIX.

Nesse aspecto, convém comparar a situação dessas mulheres com a dos primeiros homens psicanalistas. Graças ao trabalho da historiadora Elke Mühlleitner, conhecemos com alguma exatidão a composição da primeira sociedade de psicanálise fundada por Freud, em 1902, em Viena.

A esse primeiro grupo de discípulos reunidos em torno dele, Freud deu o nome de Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras. Os “homens da quarta-feira”, primeiros freudianos da história, reuniam-se nas noites de quarta-feira na casa de Freud.

Verdadeiro banquete platônico imerso no espírito vienense do início do século, essa sociedade foi um laboratório de ideias novas. Durante cinco anos, até 1907, esses homens tiveram a impressão de inventar uma utopia dos tempos modernos, um método capaz de iluminar o lado noturno da alma humana e de compreender a significação profunda da dialética da vida e da morte.

Exploradores das profundezas do inconsciente, esses herdeiros de um romantismo que se tornou científico pretendiam-se representantes de uma nova ciência que, a seus olhos, encarnava o ideal da filosofia iluminista.

Quase todos eram judeus e oriundos de uma diáspora que recusava o comunitarismo e o gueto, em nome dos grandes princípios da Haskalá. Preocupados em interpretar o presente em função dos mitos de um passado atemporal, cultuavam a Grécia antiga e viam nela a fonte original mais fecunda do pensamento ocidental.

Ligados por uma insatisfação comum a respeito da ciência de sua época, pareciam-se com os pacientes dos quais tratavam. Assim como eles, eram frequentemente acometidos por distúrbios psíquicos e, quando expunham seus casos clínicos, referiam-se também à sua vida privada, a seus problemas, a seus desejos. A vontade de compreender seus semelhantes era para eles uma interrogação sobre sua infância, sua sexualidade ou sua genealogia.

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Nenhuma mulher estava presente nas fileiras desse cenáculo masculino, que contava com 24 membros. Dezoito deles eram judeus, dezoito eram médicos e dez eram vienenses de cepa. Os demais membros eram provenientes da Europa Central: austríacos, poloneses, tchecos ou húngaros. Sete deles pereceram de morte violenta: quatro foram exterminados pelos nazistas, três se suicidaram.

À exceção de dois homens (Isaac Sadger e Fritz Wittels), os primeiros freudianos foram em geral adeptos da emancipação feminina, favoráveis tanto à generalização da contracepção quanto ao acesso das mulheres à liberdade sexual ou às profissões até então reservadas aos homens.

A imagem de um Freud misógino, tal como veiculada pelos movimentos feministas, é, nesse aspecto, completamente falsa, até mesmo ridícula. No âmbito da Sociedade das Quartas-Feiras, Freud não deixou de combater a tendência anti-feminina de seus dois discípulos misóginos. Da mesma forma, opôs-se às teses de Karl Kraus e de Otto Weininger, que associavam o anti-feminismo ao “ódio de si judeu”.

Em 1907, Freud anunciou a dissolução da Sociedade das Quartas-Feiras, que se transformou numa associação, a Wiener Psychoanalytische Vereinigung (WPV), primeira instituição psicanalítica do mundo.

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A partir dessa data, a febre do começo e a utopia dissiparam-se em prol de uma razão institucional e de uma organização da profissão de psicanalista. À horda “selvagem” do início, sucedeu então uma associação liberal moderna regida pelas regras de um consenso democrático.

Em 1910, por ocasião da fundação por Freud e Sándor Ferenczi da International Psychoanalytical Association (IPA), a WPV tinha 58 membros, entre os quais uma única mulher, que acabara de se filiar naquele ano.

Na sequência, a progressão do número de mulheres aumentou. Em 1938, dos 149 membros da WPV, 42 eram mulheres, ou seja, um pouco menos de um terço dos membros.

É forçoso constatar que o destino das primeiras mulheres psicanalistas não foi em nada diferente do dos primeiros homens do círculo freudiano. Tinham em geral a mesma origem social e geográfica (burguesia judaica e Leste europeu) e houve entre elas tantas mortes violentas (suicídio ou extermínio) e a mesma proporção de distúrbios psíquicos quanto entre os homens.

*Excerto de As primeiras mulheres psicanalistas, conferência proferida na Universidade de Columbia, em 13 de outubro de 1997. O texto integral (12p.) pode ser lido na obra Em defesa da psicanálise (Zahar, 2010) – que pode ser adquirido aqui.

(Autora: Elisabeth Roudinesco)
(Fonte: fronteiras.com )

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