Foram dez anos de treino formal no conservatório ao longo da minha infância e adolescência, e a cada ano eu passava nove meses tocando as mesmas duas ou três músicas ao piano.
Eu achava aquilo um saco.
As professoras insistiam na repetição, e eu não entendia a razão –para mim era apenas mesmice.
Claro, quando chegava a audição do final do ano, a música saía muito melhor do que no começo. Mas devia haver um jeito melhor de ensinar e aprender.
Vinte e tantos anos de neurociência e um professor novo de violão depois, eu ouvi a frase que faltava.
Não bastava a repetição, mas ela é necessária e desejável, desde que seu propósito fique claro para o aluno como um meio de atingir um fim: transcender a repetição.
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Nas palavras de Guilherme Lessa, “primeiro a gente tira as notas da música, para depois poder tirar música das notas”.
A neurociência explica.
O aprendizado de procedimentos, sequências motoras que são, consiste no fortalecimento de conexões entre os neurônios que representam as diferentes ações, formando redes em que a ativação de um neurônio, um nó da rede, basta para trazer consigo a ativação dos seguintes, na ordem certa, no momento certo.
Enquanto essas redes não existem, é preciso que o córtex cerebral exerça controle atento, selecionando e ativando neurônios específicos a cada momento. Dá trabalho e não flui.
A repetição bem-sucedida, contudo, é o que permite que a rede vá se formando, envolvendo não só neurônios no córtex cerebral como nos núcleos da base também, encadeando os movimentos que tocam as notas da música.
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Chegando a este ponto, as sequências ficam automatizadas –e o córtex pode, finalmente, dedicar sua atenção a outra coisa: brincar com as notas, tirando delas a música que se almejava.
Uma vez que o cérebro já sabe fazer os dedos acharem as notas, é possível se dedicar à interpretação. Praticar transcende a repetição e passa a ser experimentação.
E divertimento, também.
Descobri em Nashville as aulas de zumba no ginásio da universidade.
Mas só gostamos de uma das professoras –e agora entendi por quê. Quando eu já ia começar a reclamar que as coreografias são sempre iguais, me descobri dançando mentalmente nas filas do aeroporto.
Rachel faz mais do que ensinar os movimentos; ela dança a aula toda – e, agora que já fiz aulas suficientes para aprender os movimentos, posso dançar também.
(Autora: Suzana Herculano-Houzel – neurocientista, professora da Universidade Vanderbilt (EUA) e autora do livro “The Human Advantage” )