Cotidiano

Aos desastrados, com carinho!

O desastrado, geralmente é um distraído, esquece dos perigos, vai andando quase sem destino, entra no universo paralelo do imaginar e só cai em si quando de repente tropeça numa pedra no caminho, tropeço que parece ter sido uma intencional rasteira de deus, querendo avisar ‘não voe tão longe, meu amigo! Você ainda tem coisas para fazer neste mundo!’

Nas mãos do desastrado tanta coisa vai saindo tortamente acertada, inesperadamente cômica, assustadoramente criativa e boa.

O glorioso deslize de derrubar café na camiseta branca daquele cara “malhumoradamente”mala, quem mais teria coragem?

A magia de quebrar o gelo e sacar gargalhadas enrustidas naquelas pessoas perfeitas como a rainha da Inglaterra, preocupadas como os despertadores, sérias como os guarda-roupas de mogno maciço, o desastrado instintivamente sabe.

Ele chega com a calça clara e senta numa mureta suja, esquece de tirar a etiqueta do suéter novo, fala aquela frase sem noção no meio de uma convenção, ele troca os nomes, envia mensagem errada pra pessoa mais errada ainda, tenta consertar e quanto mais mexe mais fede.

Leia mais: Repare quão extraordinários são os defeitos!

Ele perde o senso do belo, do coerente, do ajustado, do permitido. O desastrado derruba a taça de vinho, estilhaça a xícara de porcelana, coloca sal no suco, ele é craque em sair por aí tentando arrumar os seus pequenos delitos, limpando os cantos, recolhendo os cacos, deve ser por isso que apesar de tanto descompasso, ele sabe como ninguém como remendar corações despedaçados.

Deve ser por que o coração dele sempre se estilhaça ao criar desencanto nos olhares que procuram perfeição. O desastrado já sabe bem se recolher, secar as próprias lágrimas, tirar as manchas de mágoa, descartar o que não tem mais conserto, remendar o que ainda dá jeito.

O desastrado segue, numa nova versão de si mesmo, ou numa antiga reformulada, com um tênis velho furado, um batom meio desacertado, um silêncio desajeitado… e o peito inflado de sonhos.

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O desastrado transforma as catástrofes da vida numa cena de circo. E às vezes, como ele se pune, coitado! Fica sempre tentando tomar mais cuidado, mas quando menos espera se distrai de novo e troca as bolas, derruba as verdades, quebra as ilusões.

O desastrado é apenas uma alma grande, expansiva, volumosa, arredia dentro de um corpo restrito e limitado. A alma não cabe, por isso se esparrama, se derrama e inunda tudo e todos que estiverem ao lado.

Belo é o desastrado.

(Autora: Clara Baccarin)
(Fonte: clarabaccarin.com)
*Texto publicado com autorização da autora

Clara Baccarin

Clara Baccarin é paulista dos interiores, nascida nos anos 80. É escritora, poeta e agitadora cultural. Faz parte do grupo editorial Laranja Original. Publicou, pela editora Chiado, o romance poético Castelos Tropicais (2015) e a coletânea de poemas, pela editora Sempiterno (2016), Instruções para Lavar a Alma. Em 2017 lança, em parceria com músicos e compositores, o álbum Lavar a Alma, que reúne 13 de seus poemas musicados. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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