Comportamento

Ao sujeito bem informado, inquieto e cheio de opiniões

Esse texto é um convite a pensarmos na experiência como aquilo que nos acontece, aquilo que nos toca. Não o que acontece, ou o que toca. Ao mesmo tempo em que acontecem muitas coisas num dia, quase nada nos acontece. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. O sujeito moderno é ultra-informado, seguro de suas opiniões, hiperativo e cheio de vontades, mas nada lhe acontece. Por quê?

INCAPAZES DE EXPERIÊNCIA, MAS CHEIOS DE INFORMAÇÃO E DE OPINIÃO

Primeiro, pelo excesso de informação. A informação pode ser muitas coisas, mas não é experiência e não deixa espaço para a experiência. Numa cultura em que se permanece online o tempo todo, a ânsia por informação é cada vez mais evidente — é preciso estar informado e ser informante. O sujeito da informação sabe de muitas coisas e, como passa seu tempo buscando e colecionando informações, está cada vez mais bem informado. Contudo, sua obsessão pela informação e pelo saber (não aquele de “sabedoria”, mas de “estar informado”) atropela suas possibilidades de experiência.

Depois de ler, viajar, conversar, assistir a uma aula, a um documentário ou a uma apresentação, podemos dizer que sabemos mais do que sabíamos antes. Porém, ao mesmo tempo em que adquirimos novas informações, é possível que nada tenha nos acontecido. Mesmo com tudo o que “aprendemos”, é possível que nada tenha nos transformado.

Já ouviu dizer que estamos na Era da Informação? Pois é, estamos mesmo. Mas há quem diga que também estamos na Era do Conhecimento, como se o acúmulo de informações fosse conhecimento, e seu processo de aquisição, aprendizagem. Assim, uma cultura obcecada pela informação só poderia sustentar uma sociedade antiexperiência.

Segundo, pelo excesso de opinião. O sujeito da informação é, também, o da opinião. Como sujeito moderno e bem informado, deve-se opinar sobre tudo o que acontece, sobre toda e qualquer coisa que se sinta informado, desde que a opinião seja (supostamente) pessoal e crítica. Esse sujeito moderno se vê obrigado a ter uma opinião; afinal, quem não tem opinião, nem rotulou suas crenças ou lapidou seus argumentos, sente-se “menos”. Crianças modernas aprendem, desde cedo, a preencher lacunas. Anos mais tarde, o sujeito moderno ainda mantém seu reflexo de preencher, com seu arsenal de informações e opiniões, qualquer espaço criado pela dúvida — terreno fértil para o pensamento e a experiência.

A indústria midiática — composta não só por jornais, mas também revistas e, mais recentemente, sites e páginas do Facebook — desenvolveu seu próprio mecanismo de modelagem desse sujeito. À medida que o mundo dos acontecimentos se transformava em um novo mercado para a economia, criou-se um verdadeiro aparato de fabricação do par informação/opinião. Quanto maior a causalidade entre informação e opinião, e quanto mais essa fabricação de informação e opinião ocupar todo o espaço de possibilidades do acontecer, maior é a influência para que o sujeito assuma o papel de consumidor e, finalmente, se torne um mero repertório ambulante de opiniões e argumentos — sonho de toda “enciclopédia humana”.

Tal como a informação e a opinião que consome, o sujeito moderno também é fabricado e manipulado — e, portanto, incapaz de experiência. Isso, faço questão de destacar, vai além da chamada “lavagem cerebral” orquestrada pela imprensa. Trata-se de uma camada impermeável de informações e opiniões, cuja função é garantir o status quo protegendo suas crenças e, portanto, impedir que qualquer coisa o toque.

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Terceiro, pela distorção da aprendizagem. A Educação atual é um subproduto dos motivos anteriores e, como tal, não poderia deixar de seguir a lógica: primeiro se informe, então opine. Aqui, a opinião adquire o caráter significativo da aprendizagem e o aspecto subjetivo da prática científica. O roteiro, segundo a cartilha, é sempre o mesmo: do objetivo ao subjetivo, da informação à opinião. O sujeito moderno foi tão condicionado na escola, que opinar se tornou automático e, às vezes, se limita a um padrão binário: certo ou errado, à favor ou contra, preto ou branco, bandido ou mocinho.

Desse jeito é impossível ter experiência na Escola, já que a “aprendizagem” se satisfaz facilmente com um punhado de informações, desde que acompanhadas, é claro, por um tanto de opiniões. Na maioria das escolas, a prática dos professores se limita a comprovar o repertório de informações do aluno e avaliar sua argumentação (opinião) acerca do assunto.

Quarto, pelo adoecimento da linguagem. O abuso das palavras, incentivado por interesses que nada têm a ver com comunicação ou expressão, enfraqueceu o significado do que se diz ou escreve. Palavras mentirosas e vazias tornaram o sujeito insensível e apático, daí o resultado: já não querem dizer mais nada, nem na aprendizagem, nem na opinião e, menos ainda, na informação.

A linguagem sofre de “atualidade”, contaminada por mensagens de marketing, por discursos políticos, pelo sensacionalismo da mídia e pelo exagero de pessoas do mundo do entretenimento. Logo, para acompanhar o “frescor da atualidade”, as opiniões têm de ser apressadas, artificiais e convencionais. Nesse mundo da fantasia, tudo parece falso, oco e, sobretudo, simplificado, ao contrário do mundo real, dinâmico, caótico, fragmentado e, portanto, difícil de ser compreendido e classificado.

Ora, se a linguagem cotidiana já não é capaz de dizer a verdade, é natural que se afaste da experiência. A linguagem adoecida afasta o sujeito para um mundo que já não é mundo, mas sim uma jaula, uma caricatura da vida. E por mais que esteja adoecida, essa linguagem o mantém tranquilo e seguro, a salvo da desolação e da falta de sentido. O sujeito moderno faz de tudo para não arriscar suas pequenas certezas, sua mísera segurança, seus esquemas medíocres e tudo aquilo que dá sustentação a uma vida ordenada, rotulada, apática e, principalmente, inofensiva.

É possível viver na verdade? É possível uma convivência na qual se diga sempre a verdade? Entre mil pensamentos que surgem feito faísca, e se contradizem na mesma velocidade, fico angustiado só de imaginar. Mas nem tudo está perdido! Não há nada melhor para tratar os sintomas desse mal do que uma boa dose de citações — essas frases que podem ser ditas automaticamente, sem pensar. Afinal, curar uma linguagem adoecida requer um remédio (às vezes) incômodo e muito mais complicado: pensar o que diz, e sentir-se presente no que diz.

Quinto, pela falta de tempo. Quanto tempo passamos na escola? Entre Ensino Básico, Médio e “Superior”; entre cursos de Extensão, MBA’s, Mestrado, Doutorado e afins; Quantos anos se vão? Se a formação é permanente, e cada vez mais acelerada, o tempo passa a ser mercadoria. E quando o sujeito acredita que tempo é dinheiro, trata logo de aproveitá-lo ao máximo, porque o mundo avança depressa e não se pode ficar pra trás. O sujeito moderno é assombrado por um tempo que urge, imparcial, impiedoso e implacável. Imerso nessa obsessão por tempo, ironicamente, já não tem tempo pra mais nada.

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A vida moderna é apressada, uma sucessão de momentos e estímulos. Assim, tudo o que acontece, acontece pontualmente e de forma fragmentada. Quanto mais o sujeito se desconecta da vida e da experiência, maior sua tendência em pular de coisa em coisa, sempre focado no próximo item da lista. Uma cultura obcecada pela novidade, na qual o passado é imediatamente substituído por outra coisa fugaz, sem deixar nenhum vestígio, impede o uso da memória e, portanto, qualquer conexão entre os acontecimentos.

O sujeito moderno, além de informado e opinioso, também é um consumidor (voraz e insaciável) de notícias, novidades e curiosidades. O caráter compulsivo de seu consumo se traduz numa constante busca por estímulos, então não se admira que se deixe excitar por tudo, agitar por tudo e comover por tudo — assim, incapaz de silêncio, nada lhe acontece.

Sexto, por excesso de trabalho. O senso comum nos diz que a experiência é resultado da prática e, por isso, pode ser adquirida pelo trabalho. Discordo, e já explico o porquê. O trabalho é um tipo particular de relação com o mundo, com as pessoas e com as palavras; uma relação que, geralmente, se converte em objetivos, tarefas e realizações — sofrimento para alguns, prazer para outros. O sujeito bem informado, cheio de opiniões e hiperativo, também é aquele que pretende transformar o mundo de acordo com a sua vontade, seu saber e seu poder. Esse tipo de pretensão é o que se chama de trabalho.

O sujeito moderno é obcecado por sua participação nos acontecimentos e, como tudo é pretexto para a sua atividade, está sempre se perguntando o que poderia fazer. Movido por seu desejo de fazer, produzir e controlar, o sujeito valoriza o que faz mas ignora o que lhe acontece. E por estar sempre querendo o que não é, sempre mobilizado, pronto para agir e sem tempo a perder, não se permite parar — e nada lhe acontece.

A experiência, essa possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, algo quase impossível nos tempos atuais. Nas palavras de Larrosa:

“[A experiência] requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.”

O ser da experiência, especialmente aquele de linguagem sadia, pensa no que diz e está presente em suas palavras. Por isso, é normal que suas ideias se interrompam e se desordenem, antes mesmo que consiga formulá-las — a experiência não é inimiga do silêncio. Por outro lado, o sujeito moderno, aquele de linguagem (aparentemente) sadia — porque não para pra pensar e fala sem parar —, não pode viver senão no rebanho, no coletivo, nas instituições e nas corporações.

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O QUE É A EXPERIÊNCIA, AFINAL?

Ao leitor mais inquieto, que continua se perguntando “mas que diabos é essa tal de experiência?”, confesso: é difícil falar sobre a experiência e reconhecer que se trata de algo que não pode ser conceituado ou definido. Às vezes “o que é?” não é a melhor pergunta. Nesse caso, é preciso seguir os conselhos de Larrosa e pensar mais devagar, deixar que a elaboração de sentido ocorra lentamente e seja, então, menos superficial e mais intensa. Não se trata do que é, mas do que acontece.

Se a existência é, por si só, transbordamento, criação, possibilidade e acontecimento, a experiência seria o modo de viver de um ser que existe. Contudo, mesmo que esteja além de qualquer tentativa de determinação por conceitos, ainda pode ser nomeada como palavra, pois se os conceitos definem e afirmam, as palavras apenas dizem o que dizem — sem nunca esgotar as possibilidades do real. Enfim, a experiência é o que é; uma coisa pra mim, outra pra você; uma coisa hoje, outra amanhã; algo aberto e indeterminado.

Além de Larrosa, Giorgio Agamben também me faz pensar na experiência e em sua natureza arrebatadora e, ao mesmo tempo, frágil. Só a experiência é capaz de transformar o que há de mais profundo em nós, mas basta uma dose de rotina para que se dissolva, e suma, no cotidiano. Assim, a jornada do sujeito moderno já não contém quase nada que possa se traduzir em experiência.

Olhos famintos devoram o jornal, tão rico em notícias, tão distante em vivências. O tempo que se passa ao volante, no congestionamento, é relativo: o agora, eterno, parece fugir quanto mais se tenta evitar o tédio. Uma massa de gente circula nos subterrâneos, escoando pelas estações — fluido vital pra uns, esgoto pra outros. A manifestação, que bloqueia a avenida e dificulta a circulação, deveria estimular algo além do incômodo e fazer (re)pensar. Bombas de efeito moral aqui e acolá, entre sons de disparo que cortam o ruído constante da metrópole. Filas no paraíso das recompensas, promoções no supermercado e liquidações nas lojas. Uma mistura de desconforto, curiosidade e muda promiscuidade com desconhecidos no elevador, no ônibus e no metrô.

Não é fácil enxergar “poesia” no cotidiano, porque a verdade dói: o sujeito moderno volta pra casa esgotado após uma imensidade de acontecimentos — divertidos, tediosos, prazerosos, comuns, estressantes — sem que nenhum deles tenha se convertido em experiência.

Repito: experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece. Mesmo que tenha relação íntima com a ação, nunca é intencional, pois é o que se sofre, não pela ação em si, mas pela entrega, paixão e receptividade; pela exposição, atenção e escuta; pela sensibilidade, abertura e disponibilidade. Para elaborar uma reflexão que dê conta da experiência, é preciso partir do ponto de vista do amor — não aquele “romântico”, mas o que nos faz enxergar um pedaço de nós no outro e vice-versa. Ora, é preciso amor para elaborar (com os outros) o sentido do que nos acontece.

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Sob um olhar analítico, a experiência é apenas miragem. Embora pareça individual ou particular, na verdade, é singular. Por isso, estará sempre além do alcance da ciência, incapaz de lidar com a singularidade do real. Tudo o que é real pode ser fonte de experiência, pois transborda qualquer identificação e qualquer representação, ignora a distinção entre sensível e inteligível, é incomparável, extraordinário e único. Se o real nos oferece o singular como experiência, a experiência nos singulariza — únicos e incompreensíveis.

A experiência é algo que não se antecipa, não se prevê nem se planeja. Na experiência, há sempre um quê de incerteza: não se sabe o que nos acontece, não se sabe o que dizer e não se sabe o que fazer. Diante disso, nenhum dogmatismo é capaz de explicar, nenhuma linguagem é capaz de elaborar e nenhum método ou regra prática é capaz de prescrever. Para dar conta de algo como a experiência, é preciso enunciar de maneira única o singular, falar em nome próprio, assumir a primeira pessoa por trás das palavras; é preciso se expor, dizer o que se pensa, encarar a insegurança da própria fala e a incerteza dos próprios pensamentos. Acima de tudo, não basta um remetente, é preciso um destinatário que, embora desconhecido, seja mais do que ninguém — é preciso fazê-lo com alguém e para alguém.

Na Era da Informação e da Opinião, a experiência é cada vez mais rara. Porém, como saber se o que ainda resta, isso que reivindico e tento resgatar, pode ser chamado de “experiência”? Vejo uma geração de adultos que, não satisfeitos em destruir as possibilidades de uma vida autêntica, ainda acusam sua própria miséria a uma juventude incapaz de experiência.

Numa época em que a experiência se reduziu a uma porção de acontecimentos, muitos deles manipulados a fim de nos guiar para a “liberdade” (de consumir, criar dívidas e perpetuar um modo de vida insustentável), é preciso lucidez para questionar e negar o que é artificial; é preciso coragem para se entregar aos acontecimentos; é preciso paixão para se expor à vida e deixar que algo nos aconteça.

Bruno Braz

Engenheiro Químico (UFSCar-SP) e graduando em Psicologia (FMU-SP). É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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