Dia desses estava às voltas com o texto “Angústia”, de Anton Tchekhov. Ele conta a história do cocheiro Iona Potapov, que não sabe a quem confiar sua tristeza. Potapov perdeu um filho e está angustiado com isso, pois nem sabe exatamente o que aconteceu. Quando seu primeiro passageiro sobe, Iona vira-se e move os lábios, “sem dúvida, quer dizer algo, mas apenas uns sons vagos lhe saem da garganta”. O passageiro lhe pergunta “o quê?” e ele diz que perdeu um filho. “De quê?”, mas Iona não sabe exatamente. Acha que foi febre, conta que ele passou três dias no hospital e morreu, certamente pela vontade de Deus. Em seguida o passageiro muda de assunto. “Depois, torna a olhar algumas vezes para o passageiro, mas este fechou os olhos e parece pouco disposto a ouvir.” Iona fica com a palavra entalada.

Momentos depois chegam alguns rapazes muito animados e lhe solicitam uma corrida. Durante uma brecha na grande algazarra que fazem os moços, Iona diz: “Esta semana… assim, perdi meu filho!”. E o que ouve como resposta é somente: “Todos vamos morrer”. Depois de alguns minutos um dos rapazes lhe pergunta se é casado e ele responde: “Agora, só tenho uma mulher, a terra fria… O túmulo, quer dizer!… Meu filho morreu, e eu continuo vivo… Coisa esquisita, a morte errou de porta… Em vez de vir me buscar, foi procurar o filho…”, e volta-se novamente para contar como morreu o filho, mas chegavam ao destino. Ele fica então sozinho, “torce o corpo e entrega-se à angústia… Considera já inútìl dirigir-se às pessoas. Mas, decorridos menos de cinco minutos, endireita-se, sacode a cabeça, como se houvesse sentido uma dor aguda e puxa as rédeas…”.

Numa terceira vez, tenta contar a um rapaz também cocheiro e diz: “Pois é, irmão, e eu perdi um filho… Está ouvindo? Foi esta semana, no hospital… Que coisa!”. Tenta olhar e notar o efeito causado por suas palavras no rapaz, mas “não vê nada. O jovem se cobriu até a cabeça e já está dormindo.” Iona precisa falar, já estava completando uma semana que seu filho morrera e ele ainda não havia conseguido contar direito a ninguém.

O narrador diz: “É preciso falar com método, lentamente…É preciso contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu… É preciso descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. […] O ouvinte deve soltar exclamações, suspirar, lamentar…”. Ao fim, Iona Potapov conta a história de como perdeu o filho, à sua égua, que “vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo”.

Mas porque contei sobre a angústia de Iona? Como disse no início, estava às voltas com este texto quando entrei no ônibus e sentei. Em seguida uma mulher pediu licença e sentou-se ao meu lado. Ela carregava uma criança no colo, era uma menina. Então foi logo dizendo, sem me olhar, que saíra fugida do posto de saúde, pois a médica queria internar sua filha. Não podia ficar com a filha internada porque tinha mais dois filhos pequenos e não tinha com quem deixar, pois seu marido trabalhava à noite e sua mãe, bem, sua mãe era bipolar. Quase chorava enquanto dizia tudo isso, e percebi que estava angustiada.

Disse que devia ter tido só um filho, para poder cuidar bem. Perguntou se eu tinha filhos, disse que não. Me viu com o texto na mão e supôs que eu era estudante. “Você faz o quê?”. Faço mestrado. “Quantos anos tem?”. Vinte e sete, e você? “Aí, tá vendo? Você só é um ano mais velha do que eu. Era pra eu estar pelo menos formada!”. Tentei acalmá-la dizendo que ainda era muito jovem e que poderia estudar quando seus filhos estivessem mais independentes. Nem sei se ela ouviu, mas, assim como Iona Potapov, ela queria falar. Aliás, mais do que falar, ela queria ser ouvida por alguém que soltasse exclamações, que se indignasse, protestasse. Como estava íntima com Iona, fiz isso por essa moça. Compartilhei sua indignação.

Não sei se isso aliviou sua angústia, pois a filha estava doente, mas aliviei a angústia que senti ao ler o texto de Tchekhov, pelo pobre Iona, que não conseguiu se fazer ouvir senão pela sua “eguinha”, que nada lhe respondeu. Naquele momento eu me teletransportei para a Rússia e encontrei Iona. Imaginei que estava em seu coche e o ouvia calmamente enquanto ele guiava a condução e falava de seu filho, de como o havia perdido.

Sem entrar no mérito da questão da profissão de psicólogo ou psicanalista, que daí já se trata de uma escuta técnica, fiquei tocada com a possibilidade de poder ouvir a angústia de alguém que nem sabia que eu era psicóloga. Vou terminar este texto com uma citação de Rubem Alves que fala da importância da escuta:

“O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: “Se eu fosse você”. A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção.” Rubem Alves.

Se “é na escuta que o amor começa e na não escuta que ele termina”, poderia dizer que é também na escuta que algumas angústias são aliviadas e na não escuta que doem mais.

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Psicóloga clínica, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção. Autora dos livros Costurando Palavras: contos e crônicas (2012), Em defesa dos avessos humanos: crônicas psicanaliterárias (2014) e do romance Nau dos Amoucos (2017). Mãe do Adriano.

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