“Alzheimer apaga a memória, não os sentimentos” – Pasqual Maragall –
A população mundial está ficando mais velha. Em países desenvolvidos a expectativa de vida ultrapassa os 82 anos.
Contudo, com o envelhecimento da população há uma maior incidência de doenças crônicas degenerativas, entre elas as demências, sendo a Doença de Alzheimer a forma mais comum de demência.
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A doença de Alzheimer (DA) é essencialmente uma síndrome neurológica degenerativa, progressiva e irreversível. A DA deteriora as funções cognitivas – memória, orientação, atenção e linguagem – causada pela morte de células cerebrais.
Esta deterioração interfere diretamente na autonomia e na qualidade de vida do indivíduo, impactando significantemente suas atividades cotidianas.
A DA também impacta a vida dos familiares e/ou pessoas que se dispõem a cuidar desse paciente.
Com efeito, cuidar de um ente querido acometido com DA configura uma responsabilidade, um desafio diário diante da vivência do luto antecipatório, e uma constante reafirmação dos laços de afeto e amor para com aquela pessoa.
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Silvana Aquino, psicóloga com vasta experiência em cuidados paliativos e uma estudiosa dos assuntos que permeiam a morte e o morrer, conta-nos por meio de um texto belíssimo como foi para ela cuidar de sua mãe que possuía a doença de Alzheimer e sua vivência do luto antecipatório.
“DAME VALENTINA”
“- Não tenho boas notícias para te dar…
– O que a minha mãe tem?
– Sua mãe tem doença de Alzheimer.
– E qual o tratamento?
– Prozac e amor.
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Tive esse breve e impactante diálogo com o médico neurologista que acabara de fechar o diagnóstico da doença de minha mãe. O ano era 1994. Os sintomas haviam se intensificado nos últimos meses e era visível o seu desconforto com as alterações que ocorriam em sua mente confusa.
Ali começava também o meu longo processo de luto. Não poderia dimensionar o quão severamente estaria ameaçada a sua marcante presença em minha vida. Ainda não podia prever as inúmeras perdas, simbólicas e concretas, que a doença progressiva e incurável nos traria ao longo dos 26 anos que convivemos com a degeneração gradativa e despersonalizante de suas funções.
Olhei para ela e percebi a tristeza cortante em seus olhos. E, neles, vi o meu próprio reflexo, carregado de pesar, temor e impotência diante de um diagnóstico ainda tão pouco conhecido, mas já presente na história de nossa família, cuja lembrança nos parecia devastadora.
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Por muitos anos, encontrei sérias dificuldades para lidar com as mudanças relacionadas às várias etapas que se sucediam e que falavam a respeito da piora inevitável da doença. Vivi um forte sentimento de desamparo, pois ainda sentia uma grande necessidade de receber cuidados e orientações para a minha vida, que ainda florescia.
Era jovem e havia terminado a graduação em Psicologia, ao mesmo tempo em que ingressava no Mestrado e me preparava para casar. Vida nova, cheia de desafios e incertezas. Olhava para ela, e tudo o que eu queria era ouvir seus conselhos e contar com seu apoio, mas tudo o que ela precisava era que eu lhe ajudasse no banho e vestisse as suas roupas, porque ela simplesmente não sabia o que fazer com elas. Dali para a frente era ela quem contava com o meu apoio.
O progresso do Alzheimer desintegrou as experiências mais significativas de nossas vidas. Chorei a cada dia que amanhecia e que percebia uma memória a menos, uma tarefa simples que ela já não era capaz de executar sem a ajuda de terceiros, as bruscas e desesperadoras alterações de humor, tão duramente incompatíveis com sua doçura constante.
Perdemos nossas tardes após o almoço, quando nos deitávamos juntas para folhear as páginas do jornal, perdi seus bolinhos de chuva (os melhores que já comi), e que ela preparava carinhosamente para receber minhas colegas da escola.
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Perdi a possibilidade de ouvir sua linda voz, cantando Benito di Paula, enquanto arrumava a nossa casa. Perdi a possibilidade de ser reconhecida quando ela passou a me olhar e a não me ver como sua filha, tão amada. Perdi a experiência de testemunhar sua alegria com o nascimento de seus netos, cujo crescimento ela não acompanhou. Foram eles que acompanharam o seu declínio.
Após o nascimento do meu primeiro filho, ela apresentou um quadro clínico agudo, que a levou ao CTI. Naquele instante, quando percebi a ameaça de perdê-la, fui tomada por um intenso processo de ampliação de consciência, que me fez substituir a revolta e a impaciência pela compreensão de que ela não tinha escolha para fazer diferente. Mas eu tinha.
Conversei com meu pai, também afetado e confuso por todas as transformações que a doença trazia para as nossas vidas, e a partir da data de sua alta hospitalar e de seu retorno para casa, após 10 dias de internação, decidimos que assumiríamos, definitivamente, o lugar do cuidado na medida exata de sua necessidade.
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Desenvolvemos um forte sentimento de solidariedade e ajuda mútua, aprofundamos nossa dimensão espiritual e utilizamos os nossos recursos emocionais para fortalecer nossos laços de afeto.
Investidos de uma atitude empática diante das suas dificuldades, decretamos que a partir daquele dia aprenderíamos a usar o bom humor para rirmos de nossas limitações e humanizarmos profundamente nossa relação com ela.
Vivemos intensamente cada dia em que estivemos ao seu lado. Comemoramos cada aniversário, porque sabíamos que era o que ela gostaria que fizéssemos. E me dei conta de que, apesar de a doença ter se manifestado numa fase tão precoce da sua vida e no final da minha adolescência, ela já tinha me deixado uma grande reserva de lições e ensinamentos, que eu não poderia desperdiçar. Além de um amor incomensurável e incondicional.
Numa manhã, em 2004, quando eu já havia sido apresentada aos Cuidados Paliativos como parte de minha formação profissional e o praticava diariamente nos cuidados com ela, recebi o seu último presente. Antes de sair de casa para mais um dia de trabalho, como era de costume, fui ao seu leito para lhe desejar um bom dia e pedir a sua bênção.
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Ela estava especialmente desperta naquele dia. Olhou para mim, com olhos alegres e comovidos e disse: “minha filha!” Caí num pranto profundo, o mesmo que me toma agora, quando resgato essa lembrança. Fazia 4 anos que ela não emitia um único som!
Foi a última vez que ela falou. Mas ali tive a certeza de que, se o Alzheimer destrói conexões neurais, ele não é capaz de atingir conexões afetivas.
A última fase da doença durou 15 anos, contrariando as estatísticas que estimam de 1 a 3 anos para a sua fase final. Viveu esse longo período acamada, com alimentação exclusiva pela gastrostomia, cuidada quase que 100% do tempo em domicílio, com ajuda de cuidadoras e serviço de home care, com internações pontuais apenas para o controle de sintomas por intercorrências inevitáveis.
Aos 17 dias do mês de setembro do ano de 2015, no início da noite, minha mãe partiu. Meu pai me telefonou avisando que ela não reagia ao seu toque. Cheguei a casa logo em seguida e pude constatar sua expressão serena, apesar do seu corpo inerte. Também a morte tem a sua expressão.
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Chorei copiosamente por alguns instantes, sentindo um misto de tristeza e alívio. Seu longo processo degenerativo chegava ao fim. Agradeci imensamente a Deus por sua partida ter ocorrido exatamente como imaginávamos: sem dor aparente, sem tratamentos fúteis e invasivos, em seu leito, no aconchego de sua casa, perto da gente.
Meu marido, grande parceiro ao longo de todos estes anos, tratou de tomar as providências para resolver as questões práticas para o funeral. Optamos pela cremação e fizemos uma bela despedida, à altura da beleza que foi a sua vida. Depositamos suas cinzas no Alto da Boa Vista, na Floresta da Tijuca, lugar pelo qual ela tinha verdadeira adoração. Foi a forma que encontrei de integrá-la àquela atmosfera de natureza exuberante e significativa para a sua história.
Minha mãe marcou a vida de muitas pessoas, sempre bondosa, conselheira, amante dos estudos e grande incentivadora para que eu chegasse o mais longe possível em minha formação. Lembro-me de seu empenho e de seu investimento quando iniciei a faculdade. Já doente, durante os períodos de lucidez, ela sempre dizia: “Minha filha, se você tiver a vontade de estudar que eu tive e não pude, vou fazer de tudo para te proporcionar condições para que você conquiste o seu lugar. Mulher negra e pobre precisa se dedicar em dobro para conseguir o que deseja”. Nunca me esqueci disso.
O Alzheimer apagou a sua memória, mas jamais nos distanciou. Pelo contrário, nunca estivemos tão ligados uns aos outros, pois entendíamos que a doença era uma grande oportunidade de ampliar o significado que se atribui à vida em família. Somos todos passageiros e companheiros de uma jornada finita, e essa é a nossa única chance de fazermos desta travessia uma experiência transformadora e inesquecível.
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Contar a sua história e registrá-la em escritos é a forma que encontro de elaborar o meu luto. Quando a saudade aperta, subo o Alto e inspiro o ar puro que circula entre a vegetação. Ali, o oxigênio tem uma pitada de afeto materno, que renova as minhas forças. Sinto-me muito grata e honrada pela oportunidade de encontrar com essa mulher admirável que minha mãe foi. Sua presença segue comigo todos os dias, porque o seu legado vive dentro de mim”.
Texto escrito por Silvana Aquino filha da dona Valentina
O relato de Silvana reafirma que a doença de Alzheimer jamais será capaz de apagar os laços afetivos entre nós e aqueles que amamos.
Obrigada Silvana!
Este post teve a colaboração de Silvana Maria Aquino da Silva, Psicóloga, Mestre em Sexologia pela Universidade Gama Filho, Especialista em Psicologia Oncológica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), Docente do Curso de Extensão em Psico-Oncologia e Tanatologia da PUC- Rio. Atualmente ela trabalha no Grupo COI – Clínicas Oncológicas Integradas.
Referências:
MARINS, AMF; HANSEL, CG; DA SILVA, J. Mudanças de comportamento em idosos com Doença de Alzheimer e sobrecarga para o cuidador. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 352-356, junho 2016. Available from
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452016000200352&lng=en&nrm=iso
FERNANDEZ-CALVO, B et al. Resilience in caregivers of persons with Alzheimer’s disease: A human condition to overcome caregiver vulnerability. Estud. psicol. Natal, v. 21, n. 2, p. 125-133, junho 2016. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2016000200125&lng=en&nrm=iso.
Oliveira, KSA, Lucena, MCMD, Alchieri, JC. Estresse em cuidadores de pacientes com Alzheimer: uma revisão de literatura. Estudos e Pesquisas em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 47-64, 2014. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v14n1/v14n1a04.pdf
Organização Mundial da Saúde (OMS). OMS: Expectativa de vida subiu 5 anos desde 2000, mas desigualdades na saúde persistem.19 de maio 2016. Available from
http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5102:oms-expectativa-de-vida-subiu-5-anos-desde-2000-mas-desigualdades-na-saude-persistem&Itemid=839
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Interessante.