Comportamento

Afinal, o que há de tão ruim na morte?

“Afinal, o que há de tão ruim na morte?” — a pergunta é inocente, mas não deixa de ser provocante. Quando se trata de algum desconhecido, é curioso como distanciamento e apatia se encontram. Quando falamos de alguém próximo, a morte é acompanhada por aversão. Queremos evitar até a morte associada à carne que consumimos. As distâncias físicas e sociais entre o abatedouro e a nossa mesa nos isolam do medo e da dor que os animais sentem antes de morrer, pouco antes de se transformar em pedaços de carne.

Mas nosso isolamento da morte também vai além da indústria alimentícia. Ao acumular riquezas (fortuna, status, beleza ou conhecimento), ignoramos o fato de que são voláteis e, portanto, inúteis no final. “Dessa vida, nada se leva”, diz o ditado, mas o mundo, que nos induz à fixação em acumular, baseia-se na pretensão de que podemos levar tudo, e que essas riquezas têm real valor. A maioria das pessoas só percebe o que é realmente importante quando vê a morte de perto. A realidade da morte revela a completa loucura dos objetivos e valores convencionais, tanto coletivos quanto individuais, da sociedade atual.

Não é de se admirar, então, que a nossa sociedade, de uma riqueza sem precedentes, tenha desenvolvido um medo da morte igualmente sem precedentes. Prolongar e assegurar a vida se tornou mais importante que a própria maneira como vivemos. A área médica torna isso evidente ao considerar a morte como o pior cenário possível — pior até do que o prolongamento da dor. Percebe-se o mesmo tipo de pensamento entre universitários que optam pelo sofrimento prolongado, estudando assuntos que odeiam para conseguir aquele “bom emprego” que não gostam e, enfim, conquistar sua “estabilidade financeira”. Prevalece o medo de viver plenamente, de se arriscar a trabalhar em algo realmente divertido, empolgante e alinhado com seus propósitos. Por trás disso está a obsessão por segurança, ao ponto de tentarmos controlar o mundo para nos isolar ao máximo da morte. Tudo se resume ao ego, tentando tornar permanente aquilo que é temporário.

As raízes desse medo vêm da separação dualista entre corpo e alma, matéria e espírito, homem e natureza. O legado científico de Newton e Descartes diz que somos finitos, entidades separadas do todo, e que a vida e seus eventos são acidentais. O universo e a vida podem ser completamente explicados a partir da aplicação de leis objetivas ao que é inanimado, em partes elementais. Dessa forma, o significado da vida seria só uma ilusão, e Deus, uma projeção dos nossos anseios e pensamentos. Se o materialismo é tudo, e a vida não tem um real propósito, a morte não pode ser outra coisa senão a pior das tragédias.

Curiosamente, o legado religioso de Newton e Descartes não é tão diferente. Quando a religião renunciou à física seu papel de explicar como a natureza (universo) funciona, acabou se “recolhendo ao reino dos céus”. O espírito se tornou oposto à matéria — algo superior e separado. Assim, seus atos no mundo material já não fazem mais diferença, deixaram de ter importância, desde que sua alma fosse “salva”. Sob uma perspectiva dualista da espiritualidade, viver plenamente como carne e osso, no mundo material, se torna menos importante. A vida, portanto, se torna uma passagem temporária, uma distração inconsequente da “vida eterna” do espírito.

Porém, outras culturas enxergavam as coisas de outro modo. Acreditavam em um mundo sagrado, onde a matéria é preenchida por alma, ou melhor, deixando de lado o dualismo, todas as coisas são alma — a única diferença é a forma como se manifestam. Ora, se todas as coisas também são alma, então a vida em carne e osso, no mundo material, também é parte da vida eterna. Essas culturas também acreditavam no destino e na futilidade de querer viver além do nosso tempo. Assim, viver plenamente, no tempo que tivermos, é de extrema importância, e a vida, uma jornada sagrada.

Quando a própria morte, ao invés de uma “vida vazia”, é considerada a pior das tragédias, torna-se claro o motivo de tanto medo, repúdio e isolamento. Quando encaramos o significado da vida como ilusão, só nos resta o ego; a morte nunca será “justa”, parte de uma grande harmonia, um propósito maior, um contexto divino… pois não se acredita em nada disso. O universo se torna impessoal, mecânico e sem alma.

Felizmente, a ciência de Newton e Descartes tornou-se obsoleta. Seus pilares, o reducionismo e a objetividade, estão desmoronando sob o peso de novas descobertas em mecânica quântica, termodinâmica e sistemas não lineares — a ordem surge do caos; a simplicidade, da complexidade; a beleza, do nada e de tudo. Nesse universo, absolutamente tudo está conectado, e há algo sobre o todo que não pode ser compreendido através de suas partes.

Há um tempo para viver e um tempo para morrer, assim é a natureza. Pense bem, sofrimentos prolongados são naturalmente raros. É claro que sentimos dor e medo em relação à morte, assim como qualquer animal atacado por um predador, e isso é triste, sim. Muitas coisas na vida também são tristes, mas, além dessa tristeza, se encontram a alegria e a completude que não dependem em evitar a dor ou maximizar o prazer, mas em viver de forma consciente, com propósito, plenamente.

Quando vivemos plenamente, uma escolha de cada vez, o coração se torna mais leve — mesmo que a razão discorde e o ego proteste. Apesar dos esforços, somos incapazes de evitar o sofrimento, a perda e a morte. O que me conforta é saber que há mais na vida do que apenas “não morrer”.

Bruno Braz

Engenheiro Químico (UFSCar-SP) e graduando em Psicologia (FMU-SP). É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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