As clássicas e populares questões de onde viemos, para onde vamos e o que somos ainda hoje permeiam todas as abordagens filosóficas e psicológicas acerca do humano. Não é possível desvincular estas perguntas e suas possíveis respostas do cenário, ou melhor, do background epistemológico bem explícito e resumido no antagonismo entre questões dialéticas e teleológicas.
Entendendo dialética, fundamentalmente, como processo, e teleologia como finalidade, estabelecemos dois parâmetros irreconciliáveis quanto à concisão e coerência, desde que a relação entre oposição e transformação – dialética e processo – não se assemelha às explicações causalistas, deterministas, que desembocam em explicações finalistas como determinantes de acertos e consistência. Tudo se desenvolve nestes contextos, nestas vertentes opostas; assim se percebe, assim se pensa, assim se dialoga e discute, mesmo sem saber a que referencial se pertence. Acreditar ser fruto da evolução das espécies ou ser por Deus criado, também exemplifica esta filiação.
Nas constatações empiristas – nas quais o pregnante é a sensorialidade – o verificado é o denso, o funcional, a finalidade que tudo explica e justifica. Nas visões dialéticas, processuais, os processos e suas mediações se impõem. Quando se diz, por exemplo, que o importante para o homem é o prazer, é sentir-se bem, mesmo sofrendo ou fazendo sofrer, como é o caso das mundanas explicações do livro Cinquenta Tons de Cinza e outros equivalentes (restabelecendo o sadomasoquismo do Marquês de Sade), se afirma finalidades como justificativa de comportamento: neste caso é o prazer, em outros pode ser a vingança, o poder ou o encontro com Deus.
Finalidades não definem o homem, elas nada explicam desde que são contingenciais aos seus propósitos e implicam em negar como relacional, a estrutura biológica, neuropsicológica do humano. Quando não existe este entendimento, surgem explicações elementaristas, explicações causalistas acerca das questões o que somos o que é humano através, por exemplo, de conceitos como natureza humana, instinto ou fruto de um criador, como construtores do homem. O ser humano é um organismo que se realiza enquanto satisfação de necessidades, mas ele é também uma possibilidade de relacionamento. Esgotar possibilidades em necessidades é transformar-se em animal, em máquina (robô, despersonalizado), por isso, quanto mais o indivíduo se situa enquanto finalidades, enquanto resultados, mais se desumaniza.
Autorreferenciar-se em sua estrutura biológica, em sua estrutura orgânica é despersonalizar-se, animalizar-se e assim ser capaz de qualquer atuação para realizar desejo, para conseguir prazer e ultrapassar a presença do outro, transformando-o em objeto de prazer, poder ou fúria. Neste referencial orgânico das necessidades, não há transcendência, não há consideração, não há questionamentos, consequentemente impera a lei do mais forte, onde tudo pode ser feito para sobreviver, para obter satisfação de desejos. Quando os únicos critérios são os da finalidade, os do resultado (como por exemplo, ter prazer), nada há que interdite o pedófilo, o necrófilo, o zoófilo, os processos são reduzidos às relações causais predeterminadas e determinantes.
Quando se torna mais pregnante a dimensão relacional, o indivíduo descobre-se com possibilidades além de necessidades contingenciais, além de necessidades biológicas, percebe que subordinar suas motivações às finalidades e resultados, segmenta, mutila a existência em função de vantagens/desvantagens, conveniências/inconveniências, satisfação/insatisfação. Virar um subproduto de ordens econômicas, sociais e religiosas é desumanizar-se, tanto quanto é também desumanizador se preparar para viver buscando prazer, redenção de atos, absolvição de culpas, construção de blindagens e proteções através de poder e riqueza.
Buscar finalidades é construir escala para valores que balizem, contenham e justifiquem as entregas às religiões, às instituições (família etc) e aos divertimentos prazerosos das drogas ao sexo, por exemplo. Questionamentos ao que é bom ou ruim são sempre propícios, embora o mais importante seja não estar balizado por estes critérios teleológicos, para que então se possa globalizar a míriade de variações estruturantes e contextuais dos processos relacionais.
(Autora: Vera Felicidade é psicóloga. Trabalha, desde os anos 60, em psicoterapia e é autora de 10 livros sobre Psicoterapia Gestaltista, teoria psicoterápica por ela criada. Fundou um curso pré-vestibular em psicologia onde ministrava aulas, trabalhou em hospitais psiquiátricos e manteve consultório particular de psicologia clínica.)
(Fonte: wsimag.com)
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