Pois é, aqui está um tema que deve fazer parte da vida de quase todo mundo. Aliás, eu considero quase impossível que não colecionemos algum tipo de vivência na qual nossa expectativa foi quebrada e, assim, acabamos ficando desapontados e magoados com alguém.
Em certos casos, as pessoas não guardam apenas contrariedades em relação a uma única pessoa, mas dezenas de ressentimentos distribuídos junto a vários desafetos que, de maneira inadvertida, nos decepcionaram e, por alguma razão, são perpetuados vivos em nossa memória – como se fossem feridas abertas que nunca cicatrizam.
Em parte, talvez até seja algo comum, pois, entre as relações que desenvolvemos, muitas vezes, nossas ideias e preceitos não se encaixem perfeitamente à visão que as outras pessoas têm da realidade e, assim, esse “desajuste” de expectativas acaba por ocasionar um tipo de atrito existencial.
O problema, entretanto, é que o rancor tem uma vida muito longa, ou seja, raramente a pessoa que nos atingiu fica sabendo do ocorrido e, dessa forma, o indivíduo que cometeu o deslize dificilmente poderá, de alguma forma, “consertar” as coisas e se retratar, reparando assim o ocorrido.
Lembremos que é uma tarefa praticamente impossível a alguém pedir desculpas a respeito de algo que não tem consciência que cometeu e, assim, a cada processo de recordação que nosso cérebro executa, ao relembrar do passado, acaba por criar uma nova versão do ocorrido, agora no presente, consolidando ainda mais nossa sensação de desconforto e, o pior, impedindo nosso processo de superação e de esquecimento.
O resultado disso? Simples, eu explico.
As pessoas começam então a retaliar (mentalmente ou concretamente) aquele que os ofendeu, gerando um círculo vicioso interminável de mágoa, dor e raiva. Dessa forma, pessoas com quem um dia nos relacionamos intimamente, agora passam a ser veementemente afastadas de nosso círculo de relações.
É exatamente dessa forma que longas amizades se perdem, famílias se desmantelam e vidas importantes, que antes existiam entrelaçadas, são fraturadas para sempre.
Nossa capacidade mental de revisitar memórias passadas é uma característica milagrosa, evolutivamente falando, e adaptativa de muitas maneiras, no entanto, a função cerebral envolvida na recordação dos fatos está longe de ser lá muito confiável.
Estudos indicam que quando vasculhamos nossas recordações para obter as reminiscências, dificilmente teremos acesso à situação, como realmente ocorreu e, assim, acabamos por puxar à tona versões imprecisas. Além disso, toda vez que resgatamos uma velha memória para a superfície, ligeiramente alteramos o fato original a partir de nosso humor do momento presente, criando o que chamamos de “memória reconstrutiva”.
E, portanto, uma coisa é certa: o elemento original da animosidade vai, aos poucos, perdendo sua raiz primária e, com o passar do tempo, ganha a cada nova recordação um novo contorno, atualizado a outros elementos interpretativos – falsos, muitas vezes, pois não ocorrem “daquela forma”, reforçando nossas mágoas mais antigas.
E assim nossas feridas sangram e muito.
Dessa maneira é que caminhamos, sem perceber, por longos períodos, ao viver um certo tipo de luto ou de melancolia dirigida a alguém e que, inconscientemente, usando de nossos sentimentos de raiva, fazemos com que nossas amarguras sejam sempre aguadas, perpetuando, de maneira indelével, nossas aflições.
Mas afinal, por que isso acontece?
O ponto central a ser compreendido aqui é que a mágoa, ou seja, a “raiva” que dizemos sentir por decepção ou frustração de alguém, na verdade, não é um sentimento que tem a indignação como base, mas, na verdade, carrega um forte ressentimento inicial de desilusão, por termos sido desconsiderados, desassistidos e negligenciados por alguém que não atendeu nossas necessidades mais básicas.
Dessa forma então é que a tristeza antecede a raiva ao se tornar uma fase embrional da mágoa. Além disso, como a infelicidade é uma emoção muito profunda e intensa de ser sentida por longos períodos, nosso cérebro, de maneira acelerada e em “modo de segurança”, muda a polaridade inicial, fazendo com que o sentimento de desconsolo se transforme em cólera e repulsa, agora redirecionados não mais a nós, mas àqueles que não nos deram o devido cuidado, possibilitando-nos então uma recuperação parcial de nossa “dignidade pessoal”.
Assim, deixamos de ser vítimas para nos tornar algozes daqueles que nos entristeceram e, o pior, nos envenenando, continuadamente, pela nova roupagem raivosa do sentimento.
O fato a ser compreendido aqui é o de que, na maioria das vezes, aqueles que nos magoaram agem no limite de suas possibilidades e, se não nos entregam aquilo que precisávamos na ocasião, é porque muito provavelmente foram incapazes de perceber ou não dispunham do cuidado que nos era tão necessário (leia-se: tinham “limites” psicológicos).
O que fazer então para nos livrarmos desse sentimento?
Um exercício terapêutico muito valioso para removermos esse tipo de desilusão e de peso emocional é o da “escrita da carta”.
Quer tentar?…
Faça o seguinte então: pegue uma folha de papel e escreva uma carta direcionada a pessoa que um dia o frustrou. Descreva (a) o que houve, o que você (b) esperava receber dela e o que aconteceu com você como resultado, ou seja, (c) o que você sentiu. Ao fazer isso, finalize sua narrativa, descrevendo da forma mais simples (d) o que, de fato, você gostaria de receber dessa pessoa.
O segredo aqui é que, obviamente, você não irá entregar nunca essa carta, mas, ao colocar as ideias no papel, o exercício ajudará seu cérebro a trabalhar com seus sentimentos mais básicos, mudando e, possivelmente, revertendo a polaridade inicial de suas emoções.
Faça isso, por três dias seguidos.
No segundo dia, pegue outro pedaço de papel e tente fazer a mesma descrição, mas sem olhar a primeira carta.
No terceiro e último dia, faça novamente o exercício e, claro, sem olhar as descrições anteriores.
Ao finalizar, você irá perceber que o conteúdo mais intenso e indigesto muito presente no início irá, aos poucos, se acomodando internamente e assumindo um novo contorno experiencial.
Tenho certeza de que você irá se surpreender, em muito, com o resultado final.
Conclusão
Ao realizarmos esse exercício, muitas vezes deixamos de responsabilizar os outros como os verdadeiros causadores de nossos infortúnios e passamos a nos importar mais conosco do que com aquilo que, de fato, aconteceu.
Como diz um antigo ditado da psicoterapia: “Não importa o que fizeram conosco, mas o que fazemos com aquilo que fizeram de nós”.
Pense em nossa conversa, reflita, escreva as três cartas e, depois, me conte como se sentiu.
Você irá, dessa forma, compreender os mecanismos psicológicos da mágoa e, seguramente, mudá-los.
(Imagem: Bruce Mars)
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