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A panicat é gostosa, ser bela é outra coisa

Vincular a beleza da mulher à figura da gostosa é esmagar uma diversidade de possíveis encantos em quatro ou cinco critérios de valor. O ideal de beleza de uma época faz muitas mulheres passarem uma vida inteira querendo se adequar a formas e traços que não são seus, e assim passam uma vida inteira tentando ocultar os próprios traços, traços que poderiam irradiar beleza sobre o mundo. E temos feito do mundo um lugar feio pra caramba! A ditadura do sorriso sufoca tantas outras belezas, tantas feições… incríveis belezas que nem percebemos. Nossos sentidos são cada vez mais direcionados para uma economia de sensibilidades vigente, porque sensibilidades precisam ser cultivadas, do contrário elas também são capturadas e domesticadas pelos modelos dominantes, o poder penetra os poros e quanto menor o nosso repertório, mais facilmente ele nos direcionará a olhar, escutar, degustar, tatear e sentir modelos de mundo e de vida. O modelo é sempre um ideal incompatível com a nossa vida. É  pelo corpo que o poder empobrece uma vida.


A K., mulher de beleza extraordinária que insiste em se comparar com uma panicat…

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Acredito que a maioria das mulheres tem alguma beleza. Cada uma à sua maneira. Um jeito de sorrir e de olhar, de falar, de andar, de mexer as mãos, de provocar… um jeito que a dota de uma beleza particular e única no mundo. Cada mulher é um universo em particular, e dentro desse universo há muitos detalhes. Um detalhe… mas  podemos chamar de uma marca, um charme, um algo que é só dela e mais ninguém. Quero pontuar aqui que há muito da ordem do encontro (verPor uma Ética das Paixões Alegres), de involuntário, de acaso.

No universo masculino a panicat representa a figura da gostosa. Em um mundo de dominação masculina uma mulher que não é considerada gostosa é considerada feia. No capitalismo ser gostosa está associado à beleza, o que é um equívoco e revela pobreza nos regimes de sensibilidades possíveis. Vincular a beleza da mulher à figura da gostosa é esmagar uma diversidade de possíveis encantos em quatro ou cinco critérios de valor.

A beleza é uma potência (pelo menos é isso que quero defender) que deixa marcas. Fernanda se foi há muito tempo de minha vida, não a lembro pelos momentos de tesão, mas a forma como ela me olhava quando estava zangada nunca se apagou em mim. Enquanto a beleza pode nascer de um encontro singular a figura da gostosa responde a modelos mais ou menos padronizados.

Ser gostosa é ser para o homem, é uma demanda do tesão masculino. O termo tem sua funcionalidade em um contexto de dominação masculina e está atrelado aos ideais de beleza. O tesão é modulado, de certa forma, por ideais vigentes. Pierre Bourdieu, um sociólogo brilhante, mostra o quanto o tesão é muito mais sociocultural do que biológico – um homem da “idade-média” não subiria nas paredes por uma bunda-de-panicat, provavelmente ele se assustaria.

Assim, a panicat é muito mais um produto criado para atender a uma demanda em um contexto de dominação masculina, não se nasce panicat, é preciso fabricá-la de acordo com os ideais de beleza documentados em uma sociedade em uma dada época. Dificilmente ela causará aquela estranheza singular com que um homem é tomado diante da beleza de algumas mulheres. A panicat excita, é o tesão. Tão logo surge outra beleza-modelo-panicat já esquecemos da primeira e assim sucessivamente. A excitação é algo bom, mas absolutamente comum, é facilmente substituível por outra.

A beleza de que falo não está relacionada a nenhum ideal de belo, pelo contrário, ela acontece no corpo, nos marca, nos faz explodir em uma miríade de sensações inomináveis. É uma irradiação que fascina – nós irradiamos juntos! -, essa beleza é gratuita e sem interesses, para uma mulher bela pouco importa se a olham ou não. Já a gostosa precisa de olhares, ela deixa de existir se não a olham, envolve trocas e interesses em um contexto mercadológico.

A estranheza que a beleza pode nos causar é uma delícia! É possível sentir o raciocínio ir pouco a pouco se desmanchando. E é até bom. Saber perder um pouco o raciocínio é abrir frestas em nós para que sensibilidades outras nos ventile. De repente perdemos as estribeiras, com o que? – esse tipo de beleza a gente não sabe o que causa, não se pergunta, elegemos um ou alguns detalhes, um charme, um… Acontece e a barulheira do mundo se aquieta em nós, por alguns momentos tudo parece perfeito.

Há muitas – muitas! – mulheres que são dotadas de belezas incríveis, mas ofuscadas por ideais não conseguem enxergar a própria beleza. O ideal de beleza de uma época faz muitas mulheres passarem uma vida inteira querendo se adequar às formas e aos traços que não são seus, e assim passam uma vida inteira tentando ocultar os próprios traços, traços que poderiam irradiar beleza sobre o mundo. E temos feito do mundo um lugar feio pra caramba, a sociedade é horrível.

A ditadura do sorriso sufoca tantas outras belezas, tantas feições, bocas e olhares, tantos olhos melancólicos e sorrisos tristes… incríveis belezas que nem percebemos. Nossos sentidos são cada vez mais limitados e direcionados para uma economia de sensibilidades vigente, porque sensibilidades precisam ser cultivadas, do contrário elas também são capturadas e domesticadas pelos modelos dominantes. O poder penetra os poros e quanto menor o nosso repertório, mais facilmente ele nos direcionará a olhar, escutar, degustar, tatear e sentir modelos – modelos de mundo e de vida. E modelos são ancorados em ideais, e ideais são incompatíveis com o mundo da vida, da nossa vida. É  pelo corpo que o poder empobrece uma vida.

Foi contemplando a Madona Sistina de Rafael, um pintor da renascença, que Dostoievski descobriu que a beleza para ele era mais que estética, tinha também dimensões éticas e religiosas, e por que não de saúde? – ele precisava da beleza para não adoecer. Meu coração disparou quando há muito tempo em Os Idiotas li que A beleza salvará o mundo, um “gigante da psicologia” disse algo que se alinhou completamente ao fascínio que eu experimentava diante de situações das quais eu sabia que a linguagem era tão inútil quanto um par de patins seria para um peixe. Diferenças à parte, concordo com Dostoievski, retiro a dimensão religiosa e acredito que a beleza pode salvar nós mesmos da feiura do mundo – e da nossa.

A beleza é uma potência. O olhar escorrega no detalhe. Apaixonar-se pela beleza de alguém é, literalmente, cair em um buraco como Alice caiu e de repente se ver em outra dimensão, ficamos maravilhados com o mundo que surge, mas é também um labirinto. O que nos leva a cair é um detalhe, é um coelho apressado que só você vê – só você!

O belo é o que desespera. – PAUL VALÉRY

(Autor: Adriel Dutra, psicólogo)

(Foto: Laura Sibylla)

(Fonte: http://letraefilosofia.com.br)

 

Adriel Dutra

Tem formação em psicologia, mas antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, pelas músicas, pelos autores, pelos filmes, pelas poesias e pela arte que o fizeram, principalmente, sentir. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver, encontra-se beleza demais nessas frestas. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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