Alphaville é uma sociedade do futuro, localizada a anos-luz da Terra e comandada por um computador todo-poderoso, o Alpha 60. Todos os habitantes são iguais e não há espaço para emoções – que dirá tristeza. Alphaville é também o nome dado a um dos primeiros condomínios fechados no Brasil, localizado em São Paulo. Enquanto o primeiro Alphaville, um filme de Jean-Luc Godard de 1965, se mostra um pesadelo, o outro, inaugurado na década de 70, encarnou o sonho de consumo daqueles que buscavam qualidade de vida, conforto e segurança. Um condomínio fechado, porém, não consegue impedir a diferença e o sofrimento, e essa é uma das questões levantada pelo psicanalista Christian Ingo Lenz Dunker no livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma (Boitempo, 416 páginas).
A tese é corajosa: por meio da psicanálise e do cinema brasileiro, o autor mostra que o ideal de condomínio é vivido também por quem não escolheu esse modelo de habitação, e são muitos os monstros criados por essa fantasia. Alguns deles, como tratar a diferença como uma ofensa pessoal, fazem com que a convivência no Brasil seja cada dia mais complicada e violenta. Por outro lado, o sofrimento fica cada vez mais reduzido a algumas formas de expressão. Acompanhe nossa conversa com Dunker:
A transformação da vida em condomínio deixa clara a invasão do espaço público pelo privado. Quais os perigos disso e as implicações em nosso sofrimento?
Christian Dunker: A tese do livro é que a gente pode entender o condomínio mais além da forma concreta de vida entre muros, como uma espécie de patologia das nossas relações com o outro e com o espaço social, no sentido de que os condomínios [físicos] proliferam no Brasil num momento em que o Estado se demite da função de organizar o espaço público. Ele entrega isso para iniciativas independentes que vão ter muita autonomia para definir quais são as regras e a maneira de habitar aquele espaço que não é mais exatamente público. É uma espécie de concessão. Do outro lado, a gente tem uma certa alteração desse modo de vida dentro do condomínio, na medida em que se força e se cria artificialmente uma vida entre iguais. É uma vida em que você desaprende a lidar com as diferenças. É um berçário para modos muito empobrecedores de estar com o outro, nos deixando vulneráveis ao consumo de álcool e drogas de forma superexagerada, à agressividade e à violência de uma forma disruptiva – como eu não sei lidar com a diferença, ela acaba sendo uma espécie de ofensa à minha existência. Fica-se vulnerável ao tédio, à apatia, ao excesso da relação com o trabalho, a uma espécie de hiperinflação da produtividade. Quando você cria essa vida em condomínio, a vida privada passa a ser um pouco mais gerida por regras do espaço público. Então, a gente tem os clássicos sintomas do sentimento de inautenticidade, do sentimento de esvaziamento, de que você está permanentemente representando uma espécie de papel.
É um ataque à subjetividade, que é justamente o que nos diferencia?
É um ataque, mas sempre justificado como defesa. Eu preciso fazer isso porque o outro, o mundo lá fora é perigoso. Para que eu tenha uma vida viável, funcional e protegida, eu preciso fazer isso. Sobreviver passa a ser um grande ideal. Mas isso é muito pouco. O tipo de encrenca que isso traz não é do tipo da psicopatologia clássica, como uma depressão ou um pânico, mas é o empobrecimento da experiência. E a partir disso você tem a potencialização dos sintomas mais clássicos.
Qual o papel do sofrimento na vida de um sujeito e por que ele ganhou a conotação de algo a ser combatido ou eliminado?
Há uma história das nossas formas de sofrer. Até o século 19, o sofrimento tinha uma conotação moral muito definida pela experiência religiosa. No nosso caso, judaico-cristã, que prescrevia uma maneira de estar no mundo mais ou menos hegemônica e que passava pelo sofrimento, por uma associação entre amar e sofrer: “Cristo se sacrificou por nós na cruz”. Esse é um modelo de ato de amor, e inclui santos martirizados, heróis que se doam. A partir do século 20, e principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, há uma desconexão dessas coisas e o sofrimento passa a ser entendido como uma espécie de incontingência indesejável. Uma vida pode ser vivida com zero sofrimento. Isso mudou muito nossa relação com a morte, que passou a ser mais e mais intolerável e impronunciável. Isso mudou nossa relação com perdas, desencontros, com a infelicidade… a infelicidade passa a ser signo de fracasso. Isso é constranger o sofrimento para uma dimensão implausível. O sofrimento acontece e a gente tem que enfrentá-lo, e ao mesmo tempo, você tem que lidar com o fato de estar sofrendo, porque os verdadeiros winners não sofrem. Esses winners, pra nós, têm uma vida em contínuo conforto, proteção e felicidade. Isso virou uma política de estado. Há um certo reconhecimento de que o sofrimento é um fator político. Existe uma espécie de política, não ligada a partidos, que define qual tipo de sofrimento é o legítimo, qual deve ser silenciado, qual merece a atenção do Estado.
Em um mundo com leis, temos que aprender a nos divertir. Tem como aprender a sofrer?
Existe esse aprendizado sim, porque sofrer não é sentir dor. O sofrimento é uma experiência que implica você narrativizar algo, que pode ser tanto da ordem do mal-estar quanto da dor. Tem gente que cria histórias intermináveis em torno daquela dor no joelho direito e que, no fundo, lembra a dor que a tia tinha. Na verdade, os médicos não sabem o que fazer com isso, mas dá uma boa história. Nosso sofrimento muda se eu tenho alguém que me reconhece e que me escuta. A natureza da experiência se transforma conforme a gente fala dela ou não.Outro ponto importante é que o sofrimento é uma espécie de enlaçador social. O sofrimento aproxima as pessoas. Veja o discurso tão trivial no funeral de que “a gente só se encontra nessa hora”. É nessa hora que a história da família é reatualizada, as lembranças são feitas, novas ideias surgem. Numa civilização em que encontrar se tornou quase um sinônimo de esbarrar com os outros, o sofrimento é um lugar que ainda tem força simbólica para justificar que a gente precisa contar uma história juntos. Assim como o funeral, isso funciona no desemprego, no fim do relacionamento. Além disso, o sofrimento tem sentido político porque ele coloca, quase que espontaneamente, uma alternativa. “Diante disso, o que vou fazer? Vou me transformar, ou transformar o mundo?”. O mundo, o outro, faz sofrer também.
Quais são as estratégias de vida criadas pra fugir do desprazer da vida condominial?
Acho que a gente ainda está no momento em que não se dá conta de que essa forma de vida cria problemas. Ela ainda é, pra muita gente, um ideal de consumo e de vida. Mas você vai ter que lidar com alguns problemas, principalmente, com algumas formas de tratamento prêt-à-porter do seu sofrimento. Uma coisa que a gente vê muito na clínica é uma certa atitude dos pais de terem uma expectativa escolar condominial em relação aos filhos. Eles querem pôr câmeras dentro das salas e dizem “sou consumidor, quero que meu filho tenha um tratamento x e que não tenha mais pau no gato”. Isso é caso real. Não tem mais lobo, não tem mais copo de veneno em cima do piano, não tem mais sofrimento que vem de fora. O sofrimento não vem das nossas fantasias, dos nossos demônios internos… O sofrimento vem quando se conta uma história ruim e a criança não consegue dormir mais à noite. É o exagero do máximo do sintoma condominial dentro da escola. Porque é a crença de que, se você constrói muros e não tem contato com a coisa, a coisa não acontece. Se eu puser um muro entre eu e a morte, não tem morte. Se eu puser um muro entre eu e a bruxa, eu e o lobo mau, não tem bruxa nem lobo mau.
É como se o inimigo fosse sempre externo, jamais a pessoa ao seu lado…
Exatamente. Nunca é um como você. O problema é que você nunca acha um como você. Mesmo aquele que parece tanto, no fundo, naquela hora H se revelou outro. Ele tem uma coisa que eu num consigo admitir, eu não tenho esse traço.
Como o ato de diagnosticar tem pautado nossas vidas?
O diagnóstico é um procedimento médico. Pelo diagnóstico, eu digo “você merece tratamento, tem direito a cidadania e a saúde”. Eu estou abrindo a catraca e dizendo “você entra, você não”. O diagnóstico passou a ter uma função um pouquinho diferente da sua originária, que era coordenar procedimentos clínicos, e passou a ser fator de inclusão na cidadania, de acesso ao plano de saúde. Hoje, a racionalidade diagnóstica que nasceu na clínica se expandiu para as empresas, por meio dos processos de mentoring, coaching, acompanhamento continuado. Você fechou seu balanço? Não? Então vamos diagnosticar e agir sobre o problema. Dá pra ver isso nas escolas também, com os professores se perguntando “eu dou um tempo extra para esse aluno com dislexia? Quanto tempo devo dar?”. Você pode pensar isso no universo jurídico, no das relações humanas. Há 20 anos, você ter um diagnóstico era uma coisa vergonhosa, pois era percebido como alguém deficiente. Hoje é banal você dizer “olha, não vou poder sair com você hoje porque sou deprimido”. “Aquela vez que eu te xinguei é porque eu tenho transtorno bipolar”. As justificativas com diagnóstico passaram a ser parte da nossa conversa comum.
Por que a psicanálise costuma não nomear o sofrimento do paciente?
Ela nomeia também, mas de uma maneira mais atenta ao fato de que essa pessoa tem uma maneira singular de sofrer.
Mas ela não comunica isso ao paciente, comunica?
Às vezes, sim, mas o diagnóstico não é feito tomando por base uma espécie de vocabulário ou de dicionário constituído para todo mundo. A psicanálise usa uma espécie de código que o paciente traz. “A minha tia me chamava de torto.” Torto é um diagnóstico. Então, a gente extrai isso dos pacientes e leva em conta o autodiagnóstico.
De que maneira o diagnóstico se revela fundamental para as relações de produção e consumo?
Isso foi um mercado descoberto a partir dos anos 60 com as famosas donas de casa norte-americanas ansiosas e que de repente descobriram que isso tinha cura. Chamava-se Vallium. É uma indústria bastante recente, e cada novo antidepressivo toma bilhões em desenvolvimento, experimentação, marketing. Você pega o manual estatístico e diagnóstico publicado pela Associação Psiquiátrica Americana. Desde 1962 ele vai evoluindo e absorvendo demandas e favorescências dessa indústria. O último, o DSM-5, publicado em 2014, gerou uma reação mundial de repúdio porque 72% das pessoas que participaram da elaboração desse código são funcionários da indústria farmacêutica. A chance de o cara pensar que existe um medicamento para depressão, mas não existe medicamento para uma histeria é grande, então por que não escolher depressão e dizer que a histeria acabou? Ah, incrível! Tem doenças que não têm mais, e outras foram criadas. A indústria do sofrimento é uma poderosa força econômica. Você tem que produzir sofrimento, tem que dizer para as pessoas que aquilo é um problema, tem que produzir uma epidemia de depressão e aí você diz “agora eu tenho a cura”.
Com a transição dos modelos psiquiátricos de clausura (manicômios, hospícios) para diagnósticos mais adaptados às exigências do capitalismo à brasileira, parece não haver pudor ou vergonha de se declarar um usuário de remédios. Por outro lado, há uma certa vergonha de mostrar que está se buscando tratamento. Isso ocorre?
Ocorre sim. O antidepressivo e as medicações são uma solução individual e que, no fundo, apartam você da causa do seu sofrimento. Você está deprimido, ou com pânico, mas veja, isso não tem relação com a sua forma de vida. Isso não tem relação com como você está amando, trabalhando, desejando, ocupando o espaço. Isso tem relação com o seu espaço cerebral. Então você corrige isso. Isso cria uma espécie de alívio moral, que vem junto com a medicação e com a ideia de que “olha, não é alguma coisa que eu esteja fazendo, é alguma coisa que se implantou na minha cabeça”. A ideia de falar com o outro sobre isso se torna uma fraqueza. Aí eu vou ter que reconhecer duplamente que tenho alguma responsabilidade.
De que maneira o cinema brasileiro da Retomada (pós 1994) pode nos mostrar que a nomeação do mal-estar é uma estratégia política?
Uma peculiaridade do cinema brasileiro desse momento é que ele tomou para si a responsabilidade de refazer discursivamente as nossas formas de sofrimento na pós-ditadura. Havia o Cinema Novo, que era um projeto de repensar o Brasil a partir desse discurso e era uma forte inspiração para o reconhecimento de formas de sofrimento. Terra em Transe, ao mostrar o povo sendo assassinado pelas costas, deu visibilidade para isso, e é um ato sumamente político e estético e psicológico, pois está ensinando às pessoas que essa é uma forma de sofrimento que merece ser reconhecida. A estética da fome acabou sendo violentamente interrompida. Então, o que temos no Cinema da Retomada é uma tentativa de recontar a história. Quais são os ambientes? O condomínio, as prisões, o morro (Cidade de Deus, Carandiru). Temos as narrativas de vingança porque você entende que a história recente teve um hiato, uma sacanagem em que você não conseguiu se exprimir, então foi preciso inventar formas de captar ou traduzir o mal-estar. Na Retomada, as pessoas que vinham de um outro universo, do cinema publicitário. É um pessoal que viveu a globalização na pele, viveu outras regras do processo produtivo e está pensando no sofrimento de uma outra forma. Não é mais campo e cidade, num é mais o trabalho alienado. É um cinema onde a violência tem um outro sentido. Não é mais efeito da luta de classes. É uma violência hobbesiana, de todos contra todos, errática. É uma violência que vai conversar com essa hipótese consensual de que a defesa é ir pra essa sua cidade interna, pro seu condomínio.
Lembro que, por volta de 2002, 2003, época de lançamento de O Invasor, Cidade de Deus e Carandiru, mesmo com o sucesso de público, havia certa rejeição das pessoas em admitir aquilo como o país em que elas viviam. Como se fosse um Brasil distante delas.
Um dos sentidos da Retomada é colocar o Brasil em pauta de novo. Porque o que o hiato da ditadura fez? Criou uma espécie de cegueira para o tamanho da encrenca. Tanto que havia uma discussão sobre o que é o Brasil no seu conjunto de contradições, e que desapareceu. E justamente no momento desse desaparecimento, as pessoas começaram a ir para condomínios e a criar essa mentalidade de Maria Antonieta. “Como assim tem pobreza?” “Eles fazem isso? Porque na minha casa não acontece.” É um egocentrismo que foi favorecido por políticas de estado e que começa a ser revisto com esses filmes que devolvem pra gente uma imagem insólita, diferente. Mas também, se pensar por outro lado, é o momento em que começam os programas televisivos de exploração da violência. Ratinho, Datena, em que você saca que a violência é um produto. Porque o sofrimento é um produto. O outro está sofrendo, eu não, então eu posso gozar dele desde que eu esteja à distância. Não sou eu.
Depois do ideal de vida murada dos anos 70, 80, 90 e 2000, observamos um desejo de retorno aos espaços públicos, pelo menos para entretenimento (fluxos, parques etc). Por que isso ocorre?
Quermesse, carnaval, Virada Cultural, mesmo o Minhocão. Obviamente, a asfixia e o empobrecimento de uma vida condominial são percebidos pelas gerações mais jovens. Eles olham pra isso e falam “é isso que eu tenho que sonhar? Ter um carrinho parado numa graminha e o vizinho enchendo a paciência? É muito pouco”. Onde é a saída? É o mundo, a rua.
E essa percepção é típica dos jovens?
É, os jovens estão sempre nesta posição admirável de inventar o mundo que ainda não está. Eles estão dois capítulos à frente. A sensibilidade do adolescente e do jovem para a dimensão política do sofrimento é muito mais aguda que a do adulto. Porque a gente chama de tornar-se adulto, no fundo, resignar-se com sofrimentos. “A vida é assim”. A garotada ainda não compra isso, felizmente, sem alguma insubmissão e revolta.
(Autor: Amanda Mont’Alvão Veloso)
(Fonte: www.vice.com)
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